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Meio poeta, meio músico, Samuel Úria é mais que um gajo porreiro

É um dos melhores compositores e intérpretes da sua geração. É uma das principais representações da irreverência e do atual panorama da música portuguesa. Subiu a pulso do underground para o mainstream nacional e destaca-se pela lírica que se transfigura em canções e que, entre linhas, provoca a esquerda artística e o pensamento.

Na sua biografia oficial lê-se que nasceu “no decote da nação, entre o Caramulo e a Estrela,” e que é “meio homem meio gospel, mãos de fado e pés de roque enrole”. O facto de ter nascido em Tondela definiu o Samuel Úria artista?
Definiu em absoluto. Não há uma única vivência que eu desperdice – não posso dar-me a esse luxo. Assim sendo, existem 20 anos (e logo os mais formativos) centrados numa cidade pequena e pacata do interior do país. Até a música que eu escutei durante esse passado tondelense, era filtrada pelas circunstâncias com que a cidade me rodeava. Por isso mesmo, o referido “passado tondelense” forja-se em presente cada vez que eu, ainda hoje, escrevo canções.

Em 2009 escreveu e gravou, apenas num dia, um disco inteiro (‘A Descondecoração de Samuel Úria’), sendo que transmitiu tudo em direto pela internet, ao mesmo tempo que recebia sugestões dos espetadores via email. Como funciona o seu processo criativo?
Não tenho segredos, mas tenho amnésias. O início do processo é ainda um mistério para mim. Posso andar horas à procura do começo duma melodia, ou da primeira frase, que no final são elas quem me encontram, e raramente me lembro do momento exato em que isso acontece. Fico mais entusiasmado a registar do que a memorizar. Depois da inspiração, vem a extensão, que é o prolongar daquilo com que fui bafejado. Este segundo momento é mais consciente, intelectual e técnico, mas ainda assim tento que não seja despojado de coração. Para permanecer emotivo, basta ser-se sincero.

Com um EP e cinco discos em nome individual, que reeditou em vinil, também escreve e compõe para artistas de renome como Ana Moura, António Zambujo e Clã. O que lhe dá maior satisfação: criar músicas, para si ou os outros, ou fazer arte em português?
No fundo, nenhuma dessas coisas está desligada. Criar músicas, quer seja para mim quer seja para outros, oferece a mesma satisfação pessoal. O processo pode ter as suas diferenças, até porque os métodos são permeáveis à minha ideia do intérprete final, mas a satisfação no procedimento e no resultado são precisamente iguais. Claro que os convites que recebo me orgulham muito, e é obviamente honroso escutar-me amplificado por vozes tão superiores à minha – mas isso são os preâmbulos e os prosseguimentos. No instante criativo, por si só, o prazer é o mesmo. Já quanto à arte em português, não querendo contrariar, parecer-me-ia uma asserção pomposa e presunçosa se fosse eu a falar sobre ela. Por muito que seja arte, e a minha arte, prefiro fala de música enquanto o meu ofício.

Já foi considerado, pela crítica, um dos mais importantes escritores de canções da atualidade. Revê-se nessa ‘distinção’? Quais são os seus artistas de eleição?
Não sei se me revejo, e isto não é a humildade a falar. Simplesmente não consigo precisar o que é isso da “importância” no que toca à escrita de canções. Estou a ser muito sincero. Importância reverte-se em quê, afinal? Talvez aceite que “importância” se refira a uma manifesta influência positiva no panorama atual e vindouro, ou um qualquer destaque avassalador. Não sinto que isto recaia já sobre mim.
Quanto a artistas de eleição, a lista estende-se num número para lá do aceitável. Reverencio um punhado, mas elejo milhares.

O Samuel Úria também marca presença no mundo da publicidade. Primeiro fez uma campanha digital, com o Toy, para a IKEA, na época dos santos populares, e recentemente surgiu ao lado de Ana Bacalhau na NOS. Faz questão de ajudar a criar esse material criativo?
Outra vez, insisto em falar da minha atividade como ofício. Mesmo que a música sirva para os meus desaguares mais catárticos, poéticos e terapêuticos, não deixa de ser a minha fonte de sustento. Não digo que exista um Samuel artista sensível e um Samuel tarefeiro pragmático, porque o saber é um só. Comecei a fazer canções simultaneamente por recreação e por necessidade afetivo-espiritual, e foi aí que me forjei, mas o percurso encarreirado nestes moldes também me foi dando valências técnicas. Por isso mesmo, disponibilizo a criatividade para outros trabalhos, como é o caso das referidas publicidades. Não tenho quaisquer pruridos em relação a este assunto, porque as minhas canções valem por si, e o cariz de uma nunca é contaminado pelo propósito da outra. Contudo, nisto de ser “músico a soldo”, há sempre que deixar bem claro de quem estou a ser porta-voz; há que destrinçar as canções que eu faço das canções que eu sou.

Nos tempos que correm é crucial para um músico estar presente em várias plataformas, incluindo na publicidade, e abraçar mais o lado empresarial?
Talvez eu substituísse a palavra “crucial” pela palavra “vantajoso”; para ambas as partes. Quando o mundo empresarial requisita pessoas do meu espectro, está a evidenciar cuidado em querer fazer as coisas apropriadamente, está a aceitar um rigor menos maquinal e, muito importante, está a valorizar as artes como formas de comunicação transversais e inestimáveis. Diria até que isto, socialmente, são traços de civilidade. Já pelo lado dos músicos, a vantagem é menos idílica mas muito prática, e tem que ver com um reforço monetário para uma atividade que, na sua própria indústria, está infinitamente abaixo do fulgor de outrora.

Surgiu na longa-metragem “O Que Há De Novo No Amor?”, fazendo de si próprio. Além da escrita e composição de músicas, pondera avançar com projetos fora da área?
Há algumas coisas centradas na escrita para as quais vou sendo desafiado. E, pelo meu perfil vincado, volta e meia sou alvo de congeminações delirantes de alguns realizadores. Mas confesso que, de momento, não estou a considerar nada com seriedade, até porque há um próximo disco que tarda e me merece toda a concentração no presente.

“Eu só sei crescer”, diz a letra da canção ‘É preciso que eu diminua’. Isso aplica-se na sua vida profissional?
Aplica-se como princípio de vida, e transborda para o lado profissional. “Eu só sei crescer” é um lamento, uma coisa que tem que deve ser contrariada. É necessário considerar sempre aquilo que é exterior ao meu ego. Esta perseguição da humildade não vai fazer de mim um bem sucedido businessman sanguinário, mas a longo prazo não há sucesso que resista.

Que conselhos tem para dar a outros músicos, vindos ou não de terras fora dos grandes meios urbanos?
Não vou falar em trabalho, mas vou falar em dedicação. Talvez nem sejam coisas diferentes, mas é assim que as sinto neste momento. Trabalho pode ter só que ver com insistência. Dedicação exige sinceridade. O trabalho sorve-nos a cabeça e os músculos, a sinceridade exaure-nos até o coração.