O parente pobre da função pública é um dos primeiros na frente de batalha contra a pandemia causada pela COVID-19 e nem o facto de ser mais que necessário nesta altura lhe garante um descongelamento de carreira. O problema, diz o Sindicato dos Enfermeiros, é o artigo 18.º de uma lei de 2017.
Quando foi aprovado o Orçamento de Estado para 2018, a 29 de dezembro de 2017, entrou em vigor a lei n.º 114/2017. O capítulo III, sobre as disposições relativas à Administração Pública, trazia na secção I tudo o que diz respeito à carreira e estatuto remuneratório dos trabalhadores do setor público. No artigo 18.º da mesma, referente às valorizações remuneratórias, vinha escrito – noutras palavras – que haveria aumentos salariais nas progressões de carreira ou mudanças de escalão e que aos trabalhadores cujo desempenho não tenha sido avaliado seria atribuído um ponto por cada ano de não atribuição, “sem prejuízo de outro regime legal vigente à data”. Ou seja, esse ponto poderia ser mais que um ponto, pois até 2017 existiram outras leis sobre as remunerações na função pública e o trabalhador não deveria ser prejudicado por causa dessas mudanças.
E porque é que estamos a falar tanto nesta lei, com termos tão jurídicos e específicos, se este texto é sobre o Ano do Enfermeiro? Precisamente porque em 2020 se assinala o 200.º aniversário do nascimento da britânica Florence Nightingale – a mulher que tornou a enfermagem uma profissão da atualidade -, motivo pelo qual este ano já tinha sido determinado o Ano Internacional da/o Enfermeira/o. Aliado ao facto de vivermos em pandemia e dos enfermeiros serem, a par de outros profissionais de saúde, extremamente necessários e um dos primeiros na frente desta batalha, tendo enfrentado logo problemas como desconhecimento por causa de um novo vírus, falta de equipamento de proteção e de outros meios, bem como falta de pessoal.
A importância do tal artigo 18.º da lei foi salientada à ‘IN Corporate Magazine’ pelo Sindicato dos Enfermeiros (SE), através do seu responsável José Correia Azevedo, que representa cerca de 7500 entre os 60 mil profissionais no país.
A estagnação na carreira faz com que um enfermeiro com décadas de serviço tenha o mesmo salário que um recém-licenciado.
A carreira especial de enfermagem rege-se pelo SIADAP (Sistema Integrado de Gestão e Avaliação de Desempenho na Administração Pública). Em janeiro de 2015, este sistema trouxe as novas regras da avaliação do desempenho, nomeadamente a contratualização individual de objetivos e comportamentos entre o Avaliado e o Avaliador.
O que isto quer dizer? “Os princípios têm de ser definidos pelo Conselho Coordenador de Avaliação e validados pela Direção de Enfermagem, de acordo com o art.º 14 da portaria n.º 242/2011 de 26 de junho. Até 2014 a Avaliação do Desempenho dos Enfermeiros foi feita de acordo com o despacho nº 2/93 de 30 de março”, explicou-nos José Correia Azevedo. “Apesar do SIADAP dos enfermeiros ter sido publicado em 2011, para ser implementado em 2012, isso não aconteceu porque não estava regulamentada a Direção de Enfermagem. Para ultrapassar o problema, a avaliação do desempenho era feita de acordo com o decreto-lei 437/91, tal como determina a circular normativa nº 37/2012/DRH-URT de 17-10-2012 da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS).”
A portaria da Direção de Enfermagem foi publicada em agosto de 2013 (portaria 245/2013), mas devido a dificuldades das instituições as Direções de Enfermagem só começaram a ser constituídas quase um ano depois da sua publicação. Resultado? “As Avaliações do Desempenho cujos triénios terminaram em fins de 2012 ou 2013 ou ainda 2014 deviam ser feitas de acordo com o normativo há muito estabelecido.”
O problema é que o SIADAP não tem sido aplicado desde 2012 (referente ao triénio 2012/2013/2014; nem nos biénios de 2015/16 e de 2017/18). A estagnação tem sido maior desde 2017, também devido à dificuldade de adaptação do regime à realidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Por exemplo, como é possível ter uma Direção de Enfermagem num centro de saúde, que tem por norma três a cinco enfermeiros? Quem avalia quem, quando a portaria implica que haja sempre um superior a fazê-lo?
Segundo o artigo 18.º da lei n.º 114/2017, conforme frisou o sindicalista, “são permitidas, a partir do dia 1 de janeiro de 2018 e não podendo produzir efeitos em data anterior, as valorizações e acréscimos remuneratórios resultantes dos seguintes atos: alterações obrigatórias de posicionamento remuneratório, progressões e mudanças de nível ou escalão; promoções, nomeações ou graduações em categoria ou posto superiores aos detidos (…)”.
“Aos trabalhadores cujo desempenho não tenha sido avaliado, designadamente por não aplicabilidade ou não aplicação efetiva da legislação em matéria de avaliação do desempenho”, bem como “aos trabalhadores cujo desempenho tenha sido avaliado com base em sistemas de avaliação de desempenho sem diferenciação do mérito, nomeadamente sistemas caducados, para garantir a equidade entre trabalhadores, é atribuído um ponto por cada ano ou a menção qualitativa equivalente sem prejuízo de outro regime legal vigente à data”.
Diz o artigo que as valorizações remuneratórias “produzem efeitos a partir de 1 de janeiro de 2018, sendo reconhecidos todos os direitos que o trabalhador detenha, nos termos das regras próprias da sua carreira, que retoma o seu desenvolvimento”.
O sindicalista sublinha, com base no artigo 18.º, que “os atos praticados em violação do disposto no presente artigo são nulos e fazem incorrer os seus autores em responsabilidade civil, financeira e disciplinar.”
Parente pobre da função pública
Primeiro há que entender um ‘pormenor’ essencial: os enfermeiros, mesmo trabalhando no Serviço Nacional de Saúde (SNS), não são necessariamente funcionários públicos. Isto porque desde 2009 que o Governo não homogeneíza procedimentos entre as diversas entidades do setor, como é o caso de administrações regionais de saúde (ARS) e hospitais públicos com gestão empresarial.
Isto faz com que, num mesmo hospital, um enfermeiro esteja sujeito a um contrato individual de trabalho e que outro, nas mesmas condições, disponha de um contrato de funções públicas – que envolve, por exemplo, mais regalias em termos de férias, menos carga horária semanal e maior evolução na carreira, sem perdas de antiguidade em caso de mobilidade.
A incorreta contabilização de pontos na escala de evolução da carreira, avaliações de desempenho por efetuar e vagas insuficientes para integrar os enfermeiros-especialistas nas categorias remuneratórias correspondentes à sua experiência são outros dos problemas que se vêm arrastando desde 2009, porque, embora no ano passado o decreto-lei 71/2019 tenha definido os novos termos da carreira de enfermagem, a tutela “não negociou com os sindicatos as regras da transição do modelo anterior para o atual”.
Segundo dados internacionais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), a média europeia é de uns nove enfermeiros por cada 100 mil utentes e, em Portugal, anda nos cinco para cada 100 mil.
Há falta de pessoal para as necessidades do SNS, mas o congelamento da carreira faz com que muitos enfermeiros prefiram emigrar, como salientaram já vários sindicatos da classe.
Nem só de palmas vive o enfermeiro
Graças à qualidade do trabalho de enfermagem e a todas as horas extraordinárias feitas neste ano já de si extraordinário – de diferente que foi e está a ser -, o SNS não colapsou. Mesmo numa altura em que a própria gestão de cuidados de saúde (primários, hospitalares e não só) só não foi desastrosa graças à capacidade de trabalho e dedicação destes profissionais, cuja única missão era/é servir a população, com os sacrifícios que tudo isto implicou nas suas vidas pessoais e familiares, ainda há quem teime em torcer o nariz quando ouve um enfermeiro, um representante sindical ou a bastonária da Ordem a falar de progressão na carreira. O pior é quando o Governo é o primeiro a torcer esse nariz.
Estamos, seguramente, todos recordados das greves feitas por esta classe. Em 2018 mais de 100 dias do ano foram afetados por greves de enfermeiros. É que a lei n.º 114/2017 tinha sido aprovada pouco antes. O Orçamento de Estado tinha sido feito para ‘compensar’ os anos de crise e congelamento salarial na função pública, pós-troika, mas a realidade para os enfermeiros foi outra.
Cerca de 20 mil profissionais continuam com a carreira congelada. Portanto, um terço dos enfermeiros em Portugal. Não há COVID que os/nos faça esquecer.
Como diz o lema do Sindicato dos Enfermeiros: “Por uma só carreira. Por uma só enfermagem”.