“São gerações de enfermeiros que sempre estiveram na linha da frente e, devido à agenda promiscua entre a política e os grupos económicos se sentem “descartáveis”.
Agradecemos as palmas, mas exigimos dignidade!
A pandemia que assola o planeta obriga a repensar prioridades e demonstra o quanto é vulnerável o modo de vida que construímos. Em Portugal, como noutros países, os profissionais de saúde e particularmente os enfermeiros foram homenageados e diferentes formas: palavras de reconhecimento, palmas, prémios pecuniários, etc.
Nunca as palavras “na linha da frente” fizeram tanto eco junto dos cidadãos. Mas a memória coletiva, além de curta é traiçoeira. Senão vejamos. Os enfermeiros sempre estiveram na linha da frente nos campos de batalha ou nas ruínas das cidades bombardeadas, no combate a doenças hoje erradicadas (lepra, o sarampo, a malária, etc). Estiveram na linha da frente da melhoria dos indicadores da mortalidade materno-infantil, no combate ao HIVSIDA, à tuberculose multirresistente, à hepatite B e agora ao SARSCOV2.
Mas, também estiveram e continuam a estar na linha da frente dos cuidados de proximidade, promovendo a saúde dos cidadãos, nas escolas, nos cuidados continuados e nos paliativos. Os enfermeiros estão, e sempre estiveram na linha da frente quando ocorrem catástrofes. Estar na linha da frente não é novo. Faz parte do ADN da profissão. Os enfermeiros conscientes da sua imprescindibilidade, apesar do medo, não se escusam de trabalhar e de permanecer 24 sobre 24 horas junto de quem precisa.
Durante a sua vida profissional, os enfermeiros, estão na linha da frente, numa exposição permanente a riscos biológicos, químicos, físicos e psicológicos. Apesar do que acima referido, é real e por isso revoltante a constante e sistemática tentativa de desvalorização do papel dos enfermeiros materializada numa carreira e em salários, seja no público ou no privado, que não fazem justiça a este permanente “estar na linha da frente”.
É emergente valorizar e dignificar os enfermeiros
No início do século iniciou-se o processo de não valorização dos trabalhadores da Administração Pública e, em particular, dos trabalhadores do Serviço Nacional de Saúde. Como major justificação – as regras impostas pela União Europeia para o cumprimento dos critérios de convergência – nomeadamente da divida pública, que não justifica tudo. A realidade mostra outra agenda, a da paulatina privatização do Serviço Nacional de Saúde.
Foi a alteração da Lei de Bases da Saúde em 1990 que potenciou a primeira parceria público privada (Hospital Fernando da Fonseca) e as chamadas experiências inovadoras de gestão (Hospital de Santa Maria da Feira).
Em 2002, a transformação dos hospitais em sociedades anónimas vedam as regras do regime público aos profissionais que lá trabalhavam e passou a existir num mesmo hospital enfermeiros que progrediam na carreira, que tinham mais dias de férias e trabalhavam 35 horas por semana em contraponto a outros cuja carreira não se aplicava, não progrediam, trabalhavam 40 horas por semana, etc. Por muito que Durão Barroso, e Luís Filipe Pereira, então Ministro da Saúde, afirmassem ser esta a forma de mascarar a divida pública, o facto, revela o quão os dois estavam engajados com os grupos económicos, para garantir a desconstrução do SNS.
Com a mudança de governo em 2005, sustentado pelo Partido Socialista e com maioria absoluta, o caminho escolhido não se inverteu, as desigualdades aprofundaram-se: os hospitais passaram a empresas públicas e, foi quebrado o contrato social com os trabalhadores da Administração Pública, enfermeiros inclusos, aos quais passaram a aplicar-se regras comuns, como a da aposentação, o que demonstram quanto os governantes são desconhecedores das condições concretas de exercício de cada grupo profissional Para além da aposentação, é alterado o vinculo de nomeação, fragilizando as relações de trabalho e de autonomia técnica dos enfermeiros, o valor dos licenciados desce de 1360€ para os 980€ (com muita luta foi possível conseguir que os licenciados no setor da saúde ingressem com 1201€) e o sistema de avaliação do desempenho tem como finalidade, única, impedir as progressões nas carreiras. Introduziu-se a regra de ser admitido um trabalhador por cada dois que se aposentam. A carência de enfermeiros agrava-se, não só por esta regra cega, mas também porque é imposto o equilíbrio de exploração financeira nos hospitais, num contexto de anos e anos de suborçamentação do SNS.
A Carreira de Enfermagem é revista em 2009 neste contexto de condições de trabalho e vínculos diferentes. A crise económica que se iniciou em 2008 promove, nos anos seguintes, a maior degradação das condições de trabalho dos enfermeiros com cortes salariais, nas horas extraordinárias e nas horas penosas. O desinvestimento no SNS é brutal com consequências visíveis na obsolescência dos equipamentos.
Paralelamente e sem surpresa os hospitais e clínicas privadas proliferaram pelo país. Em 2015 seria de esperar uma inversão relativamente ao caminho trilhado, principalmente nos últimos 15 anos. Contudo, a política relativamente aos recursos humanos, e em concreto em relação aos enfermeiros, não se altera. A negociação, em 2017, da Carreira de Enfermagem redunda em imposição pelo Ministério da Saúde que unilateralmente encerra as negociações. O compromisso do Primeiro Ministro, António Costa, em valorizar e dignificar os enfermeiros, não passa disso mesmo, palavras.
A carreira ganha três categorias, uma das exigências dos enfermeiros, mas perde valor e elasticidade em termos do desenvolvimento profissional. O acesso às categorias de enfermeiro especialista e de enfermeiro gestor é feito através de concurso e o poder para a abertura de concursos retorna aos Ministérios da Saúde e das Finanças. Várias novas injustiças acumulam-se às já existentes, nomeadamente, a não contabilização do tempo de serviço aos enfermeiros com contrato individual de trabalho e a descategorização de enfermeiros que estando no topo da carreira com funções de direção são enquadrados numa categoria inferior e terão que se sujeitar-se a novo concurso para fazer aquilo que já faziam.
São gerações de enfermeiros que sempre estiveram na linha da frente e, devido à agenda promiscua entre a política e os grupos económicos se sentem “descartáveis”.
O futuro do Serviço Nacional de Saúde e dos seus profissionais
Para inverter esta situação é fundamental que os decisores políticos assumam o Serviço Nacional de Saúde como um bem comum, essencial para garantir o bem-estar dos portugueses.
Não basta dotá-lo de equipamentos, é tão ou mais importante formar e segurar os profissionais, reconhecer-lhes dignidade e valor, nomeadamente através das carreiras. Os equipamentos são passíveis de serem adquiridos, os recursos humanos formam-se, acarinham-se. Abrir mão do ‘know-how’ que existe no SNS é condená-lo ao definhamento. Acreditar que o setor financeiro com interesses na doença alguma vez substituirá, na plenitude, o SNS é puro delírio. A cegueira pelo lucro impede a assunção de princípios basilares para o bem estar comum: UNIVERSALIDADE, ACESSIBILIDADE E GRATUITIDADE na altura do acesso.