Justiça Opinião

“Em Portugal, a exploração do trabalho alheio não é apenas um problema moral, é também um problema legal”

(a propósito da falta de atualização da tabela de honorários do Acesso ao Direito)

Existem advogados e advogados estagiários. A designação “advogados oficiosos”, usada tantas vezes quase como se se pretendesse referir a advogados de “segunda categoria”, não existe. O que existem são advogados que, por razões várias, se disponibilizaram para estar inscritos no sistema de acesso ao direito e aos tribunais, e assumir a defesa das causas daqueles cidadãos que, igualmente por razões várias, não conseguem assumir os custos do acesso à justiça.

Seja por necessidade económica, por sentido de dever, por gosto pela advocacia, seja por que razão for, existem inúmeros advogados inscritos no sistema de acesso ao direito e são estes advogados que permitem que, no dia a dia dos nossos tribunais, todos aqueles que não conseguem pagar a um advogado não fiquem impedidos de fazer valer os seus direitos. São estes advogados que garantem que o Estado cumpra com a sua obrigação de permitir o acesso à justiça a todos que dela necessitam, independentemente da sua condição económica e social.

Os honorários no âmbito do Acesso ao Direito são suportados pelo Estado, estando os advogados totalmente proibidos de receber qualquer pagamento por parte do beneficiário do apoio judiciário. Ora, seria de esperar que um profissional altamente qualificado, licenciado em direito – alguns mestres em Direito – inscrito na Ordem dos Advogados, depois de ter sido aprovado no respetivo estágio, e que presta um serviço ao Estado, e que só pelo Estado pode ser pago, recebesse um pagamento condigno. Mas não.

A tabela de honorários para a proteção jurídica não é atualizada há quase vinte anos.  A título de mero exemplo, imaginemos que um advogado é nomeado para representar um cidadão a quem uma empresa está a cobrar cinco mil euros de serviços, que não lhe foram prestados. Este advogado terá de despender o seu tempo com, pelo menos, as seguintes tarefas: reunir com o cliente, estudar o assunto, analisar e preparar a documentação relevante, fazer a contestação, acompanhar o processo analisando e respondendo a despachos, fazer e analisar requerimentos, preparar o julgamento, fazer o julgamento, receber e analisar a sentença, comunicar e explicar a sentença e, atender a todas as dúvidas e pedidos de esclarecimento deste cidadão. São muitas horas de trabalho prestado. Ora, por todo este trabalho este advogado irá receber a quantia total e única de 204,00€.

Parece mentira, mas não é. São mesmo só 204,00€.

Os advogados não são todos ricos e não estão todos bem na vida. Pelo país fora existem inúmeros advogados em início de carreira, sozinhos, profissionais liberais, sem rede, e para quem todos os euros contam. Advogados que, com muito mérito, tiraram a sua licenciatura, fizeram o estágio e foram admitidos na ordem dos advogados, que todos os dias estudam e trabalham para crescer na sua profissão. Advogados que fazem um trabalho digno e meritório e que merecem respeito. Advogados que merecem a minha vénia e que deveriam merecer a vénia do Estado português. Estado que precisa destes advogados, mas pretende utilizar a sua mão de obra em regime de escravatura.

E é escravatura porque, embora existam advogados que não precisam dos honorários que recebem no Sistema de Acesso ao Direito para sobreviver, (e esses podem abandonar em qualquer altura), há sempre quem precise. Há sempre quem esteja a começar, há sempre quem inesperadamente ficou sem suporte familiar, ou a quem aconteceu qualquer infortúnio que o deixa fragilizado e necessitado; assim, há sempre alguém disposto a trabalhar vinte horas, por 204,00€, se for preciso. É esta necessidade que está a ser explorada pelo Estado Português, há muitos (demasiados) anos. Um Estado que se aproveita da necessidade alheia para dar resposta a um conjunto de obrigações, que é sua obrigação fundamental assegurar, sem pagar condignamente quem presta tal serviço.

Pelo país fora existem inúmeros advogados em início de carreira, (…) que fazem um trabalho digno e meritório e que merecem respeito. Advogados que merecem a minha vénia e que deveriam merecer a vénia do Estado português. Estado que precisa destes advogados, mas pretende utilizar a sua mão de obra em regime de escravatura.

Tanto é escravatura abusar da mão de obra de imigrantes desprotegidos, que são colocados a trabalhar em campos agrícolas, em troca de uma habitação partilhada com mais vinte infelizes e por dois pratos de comida, como é escravatura a utilização de profissionais altamente qualificados que, por alguma vicissitude da vida são obrigados a fornecer a sua mão de obra especializada por valores indignos e cuja verbalização causa vergonha. A falta de escrúpulos de quem se aproveita da necessidade alheia é igual.

Existiu uma razão para que fosse instituído o salário mínimo nacional, para que fosse instituída a obrigatoriedade de serem pagas horas extraordinárias, trabalho noturno, dias de descanso e por aí fora. A razão é impedir que quem detém o poder, abuse da fragilidade de quem necessita. Os advogados não são trabalhadores assalariados do Estado, mas tal circunstância não deve ser usada para legitimar qualquer exploração. Não seja, pois, o Estado português hipócrita ao ponto de fazer jus ao provérbio “faz o que eu digo, mas não faças o que faço”.

Ao longo dos últimos vinte anos, de forma educada e paciente os advogados, de quando em quando, foram lembrando os sucessivos governos de que era preciso atualizar a tabela de honorários do sistema de acesso ao direito. Infrutiferamente.

Contudo, o desrespeito com o que o Estado português trata esta classe não pode continuar. Assim, prontos a fazer-se ouvir, os advogados organizaram-se em protesto e boicotaram a inscrição nas escalas durante o mês de setembro de 2024. As escalas são uma espécie de urgências dos tribunais. Entre outras situações, o Estado é obrigado a assegurar que os arguidos presentes a primeiro interrogatório judicial ou a julgamento estejam acompanhados por um advogado. Logo, grosso modo, quando o arguido não tem um advogado que o represente num destes momentos, tem de ser nomeado um advogado, que esteja de escala, para assegurar a realização destas diligências. As escalas ocorrem todos os dias da semana, incluindo sábados e domingos, períodos de férias e inclusive a qualquer hora. Não sendo raro o advogado ser chamado de madrugada porque foi detido um menor de 21 anos ou um cidadão que não domina a língua portuguesa, por exemplo, e é obrigatória a assistência de advogado para efeitos de constituição de arguido, interrogatório, etc. Diligências que se podem prolongar por várias horas, e pelas quais o advogado recebe a quantia de €127,00.

Foi a “greve” às escalas que foi levada a cabo pelos advogados em setembro e agora também em outubro. Ora, esperar-se-ia que esta chamada de atenção para uma pretensão tão óbvia e legitima como a atualização de uma tabela de “preços” que não é atualizada há vinte anos, fosse finalmente ter uma resposta séria por parte de quem se espera sério. Mas, novamente, não.

A resposta do Ministério da Justiça foi a de tirar o tapete a todos os advogados em luta e permitir, através de uma portaria, que os juízes, o Ministério Público e os órgãos de polícia criminal pudessem, sem a intervenção do sistema de acesso ao direito, nomear qualquer advogado que se disponibilizasse para aceitar a nomeação.

Ou seja, ao invés de encher a cara de vergonha em nome do Estado Português, por ter permitido que ao longo de quase vinte anos se tivesse servido da mão de obra dos advogados portugueses a troco de esmolas, a senhora Ministra da (In)Justiça, sem aviso prévio e sem respeito por uma classe, disse-lhe: Meus caros, ou melhor, meus baratos advogados, ou voltam todos para as escalas ou está aberta a porta para o cambão, para o compadrio, para os amiguismos e para subversão do sistema.

Voltemos ao exemplo do imigrante. Quando os vinte imigrantes “nepaleses” se foram queixar ao patrão de que o quarto não era suficiente para vinte e talvez devessem receber um pouco mais do que duas refeições por dia, o patrão despediu-os a todos e no seu lugar colocou dez “paquistaneses”, a trabalhar o dobro, mas agora num quarto menos apinhado e com refeições reforçadas. Os dez agarraram a oportunidade com unhas e dentes. Há sempre quem precise… dir-se-á que foi uma tirada de mestre do patrão. Resolveu o problema e sem custos. Dos vinte, ninguém quer saber. Brilhante.

Mas… Talvez haja um pequenino, problema. É que Portugal ainda é um Estado de Direito. Em Portugal, a exploração do trabalho alheio não é apenas um problema moral, é também um problema legal.

Convém lembrar que os portugueses sabem bem o que é a ditadura e despotismo e por isso mesmo, vincularam o Estado a uma Constituição da República com direitos sociais e estabeleceram que o Estado está obrigado a garantir que todos os trabalhadores tenham direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade do seu trabalho. Assim como vincularam o Estado a instrumentos legislativos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que estabelece que, “quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de proteção social.”

Convém lembrar o Ministério da Justiça que, embora a senhora Ministra se dê ao luxo de, através de portaria, “despedir os vinte desgraçados”, talvez a sua portaria seja ilegal por violar a lei de acesso ao direito.

Sinto vergonha alheia, por esta resposta do Ministério da Justiça. Mais vergonha alheia do que senti quando em plena luz do dia cinco reclusos escalaram um muro e fugiram de uma prisão de “alta” segurança. E mais vergonha alheia do que senti quando meliantes furtaram computadores do Mistério da Administração Interna com maior facilidade ainda do que a dos reclusos a fugir da prisão.

Basta de faltas de respeito. As advogadas (e solicitadoras) portuguesas devem ser as únicas mulheres trabalhadoras portugueses que, apesar de pagarem as suas contribuições e os seus impostos, não têm direito a uma licença de maternidade. Somos certamente a única classe sem direito a subsídio de desemprego, proteção na doença, direitos de assistência a filhos dependentes e devemos ter sido os únicos profissionais com zero apoios durante os confinamentos resultantes da pandemia de Covid 19. Não bastando, os advogados prestam um serviço ao estado português, que permite que o Estado cumpra com a sua (não nossa) obrigação de garantir o acesso à justiça a todos os cidadãos, em regime de escravatura. Basta!