Os enfermeiros estão exaustos? Não, os enfermeiros já se encontravam esgotados e sob pressão antes da pandemia surgir em Portugal… agora estão, para além de exaustos desesperados e sem esperança! São emergentes medidas para proteger e dar ânimo aos enfermeiros, porque sem eles o SNS não resiste. Lúcia Leite, Presidente da Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros (ASPE), deu voz a estes profissionais que veem constantemente adiada a valorização das suas carreiras.
Vistos como heróis os enfermeiros têm sido imprescindíveis na luta contra a pandemia, mas até que ponto não estão estes profissionais em rotura?
De facto o SNS sofre de uma carência crónica de Enfermeiros, situação que se veio a agravar nos últimos 10 anos, com as limitações à contratação que implicaram a não reposição da saída anual de profissionais para a aposentação, apesar do limite de idade para os enfermeiros se aposentarem tenha sido aumentado, dos 57 anos para os 66 anos de idade.
Importa perceber que o reforço da contratação na tentativa de corrigir esta descapitalização do SNS em força de trabalho/enfermeiro continua a ser insuficiente.
Por um lado, ainda não se conseguiu compensar a dotação de enfermeiros nas diversas unidades para se garantir dotações seguras e por outro, com a complexificação das práticas assistenciais o número de profissionais necessários é muito superior ao que era necessário há 10, 20 anos atrás.
Basta pensarmos que muitas das práticas de monitorização e controlo dos resultados assistenciais implementados pelo Ministério da Saúde ou pelas instituições, apesar da desmaterialização com recurso a aplicativos informáticos, mas também por isso, consomem muitas horas de trabalho aos enfermeiros que frequentemente se vêm confrontados com a necessidade de prolongar o seu horário de trabalho para assegurar registos, sem que isso implique deixar os seus utentes sem os cuidados de que necessitam.
Outro fator que nunca foi verdadeiramente contabilizado foi o impacto dos direitos parentais nas horas de cuidados de enfermagem.
Reconhecendo a ASPE que Portugal fez uma grande evolução reconhecendo aos pais trabalhadores condições para assegurar assistência aos seus descendentes, nunca se assumiu que esses direitos implicam a contratação de trabalhadores para assegurar o mesmo número de horas assistenciais. Temos por isso uma má gestão do fator humano na saúde, que resulta em falsas horas extraordinárias, redução do ratio enfermeiro/doente e deficit de disponibilidade de cuidados de enfermagem.
Ora se esta situação já era o normal no dia a dia dos enfermeiros, será facilmente compreendido que se agravou de forma extraordinária na situação de Pandemia que atravessamos. Portanto, objetivamente a questão não é se “não estão estes profissionais em rotura”, mas antes por quanto tempo os enfermeiros vão conseguir aguentar?
Portanto, objetivamente a questão não é se “não estão estes profissionais em rotura”, mas antes por quanto tempo os enfermeiros vão conseguir aguentar?
As medidas tomadas pelo governo são cada vez mais restritivas. As novas medidas do estado de emergência, poderão efetivamente achatar a curva?
Já todos percebemos que a única forma de evitar o contágio por COVID-19 é o isolamento social, mas também que a organização social e economia de qualquer país não sobrevive ao confinamento total!
Precisamos todos de compreender que o nosso comportamento social e familiar é a única chave para controlar esta pandemia de modo eficaz, por isso o ideal seria que os cidadãos tomassem atitudes e comportamentos responsáveis, para evitarmos o colapso do SNS e evitarmos muitas mortes por COVID ou por outras causas.
Tem-se criado a falsa expectativa à população que a COVID-19 se resolverá em poucos meses com uma vacina, que como se sabe não existirá disponível para todos tão cedo.
As pessoas precisam perceber que vão ter que aprender a viver com a presença próxima do COVID-19 por muitos anos para adaptarem o seu modo de vida social, familiar e também profissional. É preciso aceitar para mudar!
O COVID-19 é muito democrático, atinge toda a população mundial de igual modo, não há para onde fugir! E a pandemia vai promover profundas mudanças sociais, na organização do trabalho, no turismo e atividade comercial, nas atividades de laser e diversão.
Qual a situação atual dos hospitais? Os portugueses continuam com receio de ir aos Hospitais?
A maioria das instituições hospitalares já ultrapassou a sua capacidade instalada para resposta ao COVID-19, estando COVID-19 para assegurar cuidados às vítimas da pandemia. O que vamos viver nos hospitais nas próximas semanas não será muito diferente dos cenários de guerra, em que o foco será salvar o possível, o melhor possível com os recursos que temos!
No caso dos enfermeiros esta já é a realidade diária. Sabem que, com as condições que dispõem não conseguem assegurar todos os cuidados de enfermagem que os seus doentes necessitam e por isso têm que atender a prioridades e garantir o essencial.
A questão é, quem precisa de cuidados diferenciados de emergência ou urgência não está a recorrer aos hospitais? Claro que está e também claramente está a ser atendido dentro do que seria habitual.
Quem não está a recorrer aos hospitais são as pessoas que não tendo uma situação urgente utilizavam de forma inadequada os serviços de urgência. Contudo, o que preocupa a ASPE é a incapacidade de resposta que os Cuidados de Saúde Primários (CSP) estão a demonstrar.
Porque a maioria das pessoas que não necessita de recorrer aos hospitais, não deixa de precisar de cuidados de saúde. Não é aceitável que haja fila à porta dos Centros de Saúde ou que um doente demore dias a conseguir ser atendido, mesmo que seja de forma não presencial.
A pandemia veio ‘desocultar’ as fragilidades do SNS, designadamente dos CSP, que têm uma organização ‘medico centrica’, um desequilíbrio enorme no ratio médico/enfermeiro e uma visão muito paternalista e burocrática do atendimento ao cliente.
Numa altura em que os Hospitais estão em rotura, recorrer excecionalmente ao setor privado pode ser uma solução viável?
Recorrer ao privado, social e a quem puder ajudar será inevitável! Contudo não podemos deixar de salientar que em Portugal o Privado e o Social sobrevivem em grande medida, de forma indireta e algumas de forma direta, à custa de Estado.
Sem convenções, subsistemas de saúde, partilha de profissionais de saúde e uma regulação permissiva a maioria não sobreviveria dois meses! Por isso, espero que se deixem todos de jogos de poder e disponibilizem efetivamente a sua ajuda desinteressada, não necessariamente gratuita, para resolver um problema, que é de todos e não só do SNS.
Há muitos e longos anos que o Ministério da Saúde concentra a sua ação no SNS como se as políticas que emana não fossem para se aplicar a todos, público, privado e social. Mas uma coisa é certa, se com a situação pandémica que atravessamos o Governo decidisse revogar as autorizações para acumulação dos seus profissionais o caos instalava-se no privado e social.
A classe política e o Governo têm honrado os enfermeiros?
NÃO. Infelizmente os enfermeiros apenas têm servido de “arma de arremesso político” entre partidos. Para os sucessivos governos os enfermeiros são o maior grupo profissional do SNS, que se deve manter subjugado e com salários inferiores aos restantes profissionais de saúde, não porque não reconheçam a sua importância e papel primordial, mas em nome do controle da despesa.
O que mais custa aos enfermeiros é perceber que apesar de conscientes das injustiças e ilegalidades a que os têm sujeitado nos últimos anos, TODOS, políticos e governantes, mantêm um discurso de hipocrisia e até de atuação dolosa nas suas ações.
Que proposta o governo pode apresentar que dignifique e valorize a carreira de enfermagem?
Neste momento bastava que corrigissem as injustiças causadas pelas medidas transitórias da carreira, assegurassem um tratamento igual entre enfermeiros com contrato de trabalho ao abrigo do Código do Trabalho e os Enfermeiros com contratos de trabalho em funções públicas e fizessem o descongelamento da carreira para todos sem anularem anos de serviço desde 2004.
O que leva o Governo a não reconhecer o evidente, que a enfermagem é uma profissão de Desgaste Rápido e Alto risco? Existe alguma medida que contrabalance com a falta deste reconhecimento?
A única razão que encontro é falta de coragem política para tomar decisões! Todos sabemos que o Governo não quer dizer que sim a uns e não a outros, porque isso faz perder votos. Contudo a ASPE entende que, mais importante que reconhecer que a profissão é de Desgaste Rápido e Alto risco, seria reconhecer que um enfermeiro aos 60 anos não tem condições para continuar a prestar cuidados com a mesma eficácia e segurança.
Os enfermeiros sempre puderam reformar-se antes dos 60 anos de idade, porque sempre se soube que as exigências da profissão, quer pela carga física, quer pela carga psicológica, não eram compatíveis com o natural envelhecimento das pessoas.
Por razões economicistas e falsos fundamentos na sustentabilidade da segurança social esse direito foi retirado aos enfermeiros. Hoje, temos colegas com situações graves de doença crónica e outras debilidades a ter que cuidar de doentes como se tivessem os mesmos 25/30 anos de idade dos seus colegas.
O ano de 2020 é o ano do enfermeiro, e foi um ano em que mais do que nunca, foram heróis e imprescindíveis na luta contra a COVID-19. Que mensagem quer deixar a todos os enfermeiros?
Os enfermeiros são a alma dos serviços de saúde, são eles que estão sempre presentes, nos momentos felizes e também nos menos felizes!
Os enfermeiros têm uma capacidade de resiliência, de adaptação e de se colocar no lugar do outro muito acima da média, por isso espero que coloquem essas mesmas competências ao serviço deles próprios.
Sei que os enfermeiros não abandonam os seus doentes por mais difícil que
isso seja, mas desejo sinceramente que aprendam a defender os seus direitos laborais, assumam a sua profissão com independência e determinação, e ainda que nos ajudem a JUNTOS CONSTRUIRMOS SOLUÇÕES!