Realizámos esta entrevista um dia depois da ASPE (Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros) ter tido uma reunião com o ministério da saúde, onde participaram também outros sindicatos. É por aí que começa esta nossa conversa com Lúcia Leite, pelo papel de constante negociação e reivindicação construtiva que desempenham. A Enfermeira e Presidente da ASPE fala-nos ainda da reestruturação do SNS, do que isso significa para os utentes, e de tudo o que a Associação já alcançou na defesa dos enfermeiros e da Saúde em Portugal.
É possível fazer um balanço relativamente ao encontro de ontem, dia 13 de setembro, com o Ministério da Saúde? Vimos anunciada uma nova greve de enfermeiros para o próximo mês de novembro.
A greve que está anunciada defende uma proposta de Acordo Coletivo de Trabalho (ACT) desenvolvida pela ASPE que foi entregue ao Governo já a 23 de janeiro. É interessante perceber que um outro sindicato, que subscreveu a nossa proposta, entende que a mesma deve ser mote para convocar uma greve. Se o SNE (Sindicado Nacional dos Enfermeiros) entendeu que devia criar pressão sobre o Governo, nós só temos de reconhecer que a sua estratégia também é importante para a ASPE. No entanto, o modo de trabalhar da ASPE não é esse!
Como o Ministério da Saúde incumpriu o prazo legal para iniciar a negociação coletiva a ASPE entregou a sua proposta ao Ministério do Trabalho a 28 de abril para conciliação. Contudo, o Ministério da Saúde continua a bloquear o processo de negociação por via da não nomeação do representante das várias Entidades Públicas Empresariais (EPEs). A lei determina o prazo de 30 dias para iniciar o processo negocial constantemente ultrapassado o que constitui um incumprimento legal grosseiro por parte do Governo. É quase como as cativações do Ministério das Finanças! Aprova-se um orçamento e depois ele não se cumpre, porque o Ministério das Finanças cativa. Na prática a lei diz uma coisa, mas o Governo arranja uma forma ardilosa de a evitar.
Para a ASPE e para os enfermeiros é fundamental que o ACT seja negociado e publicado, até porque, tratando-se do maior grupo profissional do SNS, são os únicos que não têm regulamentação laboral. Não há um único acordo coletivo de base, que ajuste o Código de Trabalho às especificidades desta profissão que trabalha 365 dias por ano e 24 horas por dia. Sem um ACT os abusos nas escalas de trabalho são constantes, os horários praticados são ilegais e há enfermeiros que beneficiam de mais dias de férias do que outros, por exemplo.
Todavia, temos de reconhecer que estamos perante uma das maiores reformas do SNS desde que ele foi criado. É uma reforma estrutural, que vai alterar a organização interna das instituições com a integração dos Agrupamentos dos Centros de Saúde (ACES) com os centros hospitalares. O Ministro da Saúde afirmou que vamos passar de mais de 100 instituições para 39 Unidades Locais de Saúde (ULS) e três Institutos de Portugueses de Oncologia (IPO), reduzindo proporcionalmente o número de concelhos de administração e acabando com as Administrações Regionais de Saúde (ARS). Isso obriga um ajustamento do sistema, que tem impactos não só do ponto de vista legal, mas sobretudo do ponto de vista funcional e organizativo, com um controle nacional realizado pela Direção Executiva do SNS. Mas o turbilhão da mudança não justifica tudo!
Ontem, fomos surpreendidos com uma reunião conjunta entre os sindicatos e o Secretário de Estado da Saúde, depois de duas reuniões de negociação, apenas para nos informar o ponto de situação do anteprojeto que ia entregar no Conselho de Ministros e que altera o regime de organização das Unidades de Saúde Familiares (USF). Um diploma que demorou largos meses a ser negociado com os sindicatos dos médicos, que não reconhece as competências especializadas dos enfermeiros, que tem uma política de incentivos suportada no desempenho global da equipa, mas que no pagamento das compensações remuneratórias paga três vezes mais aos médicos, desvalorizando o trabalho dos enfermeiros.
Desde 2007 que temos USFs e que o regime legal prevê ter enfermeiros especialistas de saúde familiar e até hoje não temos lá nenhum com a categoria de enfermeiro especialista. Existem cerca de 300 enfermeiros reconhecidos pela Ordem dos Enfermeiros como especialistas em saúde familiar, mas até hoje nunca foi aberto um único concurso para lhes reconhecer o conteúdo funcional que exercem. Estranho! Ou talvez não!
Qual é o impacto que toda esta reorganização das unidades de saúde familiar terá nos utentes? Como é que quem está de fora poderá olhar para toda esta negociação que parece sempre demasiado técnica?
O maior beneficiado nisto tudo é sempre o utente. Eu acho que para a população a acessibilidade vai aumentar muito, sendo que espero que a forma de organização das USF venha a evoluir bastante com a integração de outros especialistas, nomeadamente de saúde infantil e pediátrica e de saúde materna e obstétrica. A carteira básica de serviços das USF tem um grande pendor na vigilância da saúde infantil e na vigilância da saúde da mulher e da grávida. Se integrarmos enfermeiros especialistas nessas áreas vamos aumentar a acessibilidade ao médico de família de muitos cidadãos. A eficiência do SNS tem de aumentar pela melhor utilização das competências dos enfermeiros especialistas.
A população o que quer é resposta adequada e em tempo útil! Nós temos também de considerar que esta mudança feita em cima da integração de todos os ACES (Agrupamentos de Centros de Saúde) em ULSs vai melhorar a articulação dos cuidados de saúde primários com os hospitalares. O “jogo do empurra” entre os centros de saúde e os centros hospitalares vai acabar, porque os profissionais estão todos dentro da mesma entidade, têm todos o mesmo concelho de administração. Os hospitais e as unidades de saúde familiares ficam interligados e o circuito do doente passa a ser uma responsabilidade de todos.
O concelho de administração poderá ajustar os circuitos dos doentes e até reforçar o atendimento de proximidade para diminuir o recurso à urgência por parte de pessoas que podem ser tratadas perto da sua residência, por exemplo.
Neste momento, qualquer pessoa que vá acompanhando as notícias, assiste a utentes amontoados à porta dos centros de saúde, por exemplo, para conseguirem ter uma consulta e ouvimos constantemente que não há médicos suficientes.
Se os médicos fizessem aquilo que supostamente é o trabalho deles, só deles, não precisávamos de mais médicos, até porque nós somos um dos países que tem mais médicos por mil habitantes. Portanto, das duas uma, ou os médicos são maus, pouco eficientes, e são pouco produtivos, ou então alguma coisa se passa! Sei bem que temos muito bons médicos e que não é isso que está em causa!
São pouco produtivos, porque temos uma organização centrada no médico, com muitas atividades que poderiam ser asseguradas por outros profissionais com a mesma qualidade, garantindo ao cidadão a resposta adequada. O que nós temos é um enviesamento de todo o sistema e um bloqueio à mudança, porque convém que o SNS seja ineficiente para garantir que o privado tem negócio. E eu não tenho nada contra a iniciativa privada na saúde, até considero importante haver concorrência para incrementar a qualidade, mas entendo que se querem competir e complementar o SNS devem cumprir as mesmas normas de qualidade e segurança.
O cidadão quer uma resposta e se precisa de uma consulta, quer que esta lhe seja prestada em tempo útil. Não quer saber se é no SNS ou numa qualquer unidade privada! Mas se os portugueses pagam impostos para ter um SNS universal e tendencialmente gratuito, é isso que é suposto o Estado garantir! E infelizmente o que temos é um ataque sem precedentes por parte de interesses económicos e lobbys profissionais.
Há pouco estava a falar da dedicação plena. Defende que os médicos trabalhem em exclusividade no público ou no privado?
Entendo que deve ser uma escolha do médico. Porém se o Governo aumentou em 33% o salário do médico, que mantém as mesmas 35 horas de trabalho semanal, para lhe oferecer a opção pela dedicação plena, isto deve resultar numa dedicação à causa pública, que garanta satisfação das necessidades das pessoas como primeira prioridade e melhoria continua da qualidade dos serviços, ao invés de se “despachar o serviço” para se ganhar dinheiro no privado. A população exige uma reposta e tem todo o direito a tê-la.
Também defende que essa resposta possa ser dada pelo SNS e, por exemplo, por uma parceria público-privada?
Sim, eu não tenho nada contra as PPPs (parcerias público-privadas) propriamente ditas, desde que estas ou o privado cumpram os mesmos critérios de qualidade que o SNS cumpre. Exemplificando, para um serviço de obstetrícia estar a funcionar, são precisos vários médicos especialistas, dependendo da equipa tipo definida pela Ordem dos Médicos, mas se for para a privada basta só um – não percebo! A regra da equipa tipo já não se aplica? Para fazer uma cesariana num hospital público tem de estar presente o pediatra, o anestesista, o obstetra, a equipa toda completa com três enfermeiros. E se for no privado já não é preciso?
O Ministério da Saúde tem de passar a regular o sistema de saúde no seu todo, público, privado e social. A maior parte dos cidadãos deste país não tem noção do risco que corre nalgumas situações no privado, não tem noção dos atropelos que se fazem às normas de qualidade e de segurança. O setor privado na maioria das vezes só lhe interessa os processos mais simples, que permitem grandes volumes de doentes e que garantem rentabilidade económica. Os doentes complicados esses ou não os aceitam ou os transferem para o SNS.
Falando agora da questão da avaliação do desempenho, eu reparei que vocês têm a decorrer uma petição pública, que já vai com mais de 8 mil assinaturas, onde reclamam os mesmos direitos que foram reconhecidos aos enfermeiros da Região Autónoma da Madeira. É isso?
É sim. A ASPE tem três petições em várias fases do processo. A Petição 13/XV/1ª que já foi entregue a 21 de abril de 2022, na Assembleia da República (AR), cujo relatório foi aprovado por unanimidade na Comissão de Administração Pública e Poder Local e que está a guardar agendamento do debate em plenário.
Nessa Petição os enfermeiros estão a requer o direito ao descongelamento da carreira igual aos enfermeiros da Madeira e a atribuição de administrativa de relevante na avaliação de desempenho como compensação pela resposta à COVID -19.
A Petição nº 135/XV/1ª que foi admitida pela 9ª Comissão de Saúde da AR, que tem a ver com um bloqueio que foi feito no descongelamento dos enfermeiros que progrediram por concurso a enfermeiro especialista e a enfermeiro gestor, entre 2004 e 2009, e que no descongelamento, ou seja, na contagem de pontos, viram apagados, anulados todos os pontos desde a data em que tomaram posse da categoria. Cerca de 500 enfermeiros tiveram “o azar” de concorrer e ficar colocados numa vaga e hoje têm um salário inferior ao dos seus colegas que foram excluídos.
A ASPE lançou ainda uma terceira Petição que já tem mais de oito mil assinaturas, que será entregue na AR. Vem requer a eliminação das posições automaticamente criadas com a transição para a carreira em 2019 que a Madeira também já resolveu e iniciou o pagamento faseado. Esta é uma situação que atinge cerca de 15 mil enfermeiros, muitos pela segunda vez, que decorre de uma norma travão na progressão das carreiras que condiciona a progressão a um terço do valor normal, criando inversões remuneratórias entre enfermeiros, penalizando os mais antigos e mais qualificados.
É curioso que a Madeira tem servido de exemplo, não só para este assunto de que estamos a falar, mas também, por exemplo, para as reivindicações dos professores, em que também pedem medidas idênticas àquilo que os professores na Madeira já conseguiram, graças à autonomia.
Chama-se a isso política! Tenho de reconhecer que o conselho de administração do SESARAM e o Governo Regional, têm sido proativos. Conhecem os problemas identificados pelos sindicatos, fazem as suas propostas de redação, apresentam-nas para negociação, já com soluções que vão ao encontro daquilo que são as reivindicações dos sindicatos.
Peço-lhe agora, o mais resumidamente possível, um balanço daquilo que já foi conseguido para os enfermeiros, desde que a ASPE foi constituída.
Olhe, várias coisas. Primeiro, a ASPE nasceu em 2017 e foi o primeiro sindicato independente e o primeiro da nova geração. Todos os outros apareceram depois.
A ASPE foi um dos sindicatos que fez a Greve Cirúrgica, um marco na vida sindical dos enfermeiros, mas também um marco no sindicalismo em Portugal. Com a Greve Cirúrgica, nós conseguimos uma carreira com três categorias, conseguimos reforçar o conteúdo funcional das categorias de forma a valorizar a área de atuação de cada uma, mas também justificar uma remuneração adequada às responsabilidades.
A ASPE assinou um acordo coletivo de trabalho com todas as entidades EPE, logo em 2018 e, neste momento, é o único sindicato que tem a adesão de mais três entidades que passaram a EPE, designadamente o Hospital do Oeste, o Hospital de Loures e o Centro Hospitalar de Vila Franca de Xira. Nenhum outro sindicato, nem os mais antigos, tem este processo de adesão concluído, pelo que os enfermeiros destas entidades é através da ASPE que acedem ao horário de 35 horas por semana, que foi muito importante para eles.
Conseguimos que na contabilização de pontos, se contabilizassem os pontos desde 2004 aos enfermeiros com o contrato individual de trabalho. Conseguimos também que se introduzisse uma norma da contabilização dos contratos precários, que eram muito frequentes na altura da Troika quando não se podia fazer contratações sem termo.
Conseguimos uma outra coisa que também foi importante, que foi voltar a integrar as categorias subsistentes, ou seja, os enfermeiros supervisores e os enfermeiros chefes da carreira antiga passaram a estar integrados na nova carreira.
Na Madeira conseguimos mais, temos e voltaram a poder progredir acordos coletivos, temos mais acordos de empresa, foi autorizado o regime de trabalho acrescido, em dois biénios consecutivos os enfermeiros acumularam oito pontos para progressão, foram eliminadas todas as barreiras ao descongelamento e eliminadas a posições virtuais.
Obviamente estes resultados não foram obtidos só por ação da ASPE, são partilhados com outros sindicatos. Mas o curioso é perceber que o denominador comum é a ASPE! Ou seja, a Greve Cirúrgica foi com o SINDEPOR, o ACT de 2018 foi assinado pelo SE, SIPEnf e pelo SEP, as negociações na Madeira com o SINDEPOR e com o SERAM e agora com o SNE.
O maior ganho que considero que a ASPE conseguiu conquistar foi constituir-se como interlocutor credível, que apresenta propostas fundamentadas, que reivindica com firmeza, mas é respeitado pela seriedade com que se apresenta à negociação.
E sempre presente para os enfermeiros. Digo eu, pedindo-lhe agora uma mensagem final para fechar.
O nosso lema é “juntos contruímos o futuro”! E é exatamente isso que pretendemos fazer. A ASPE está a crescer, de forma sustentada e contínua, mas ainda sentimos as dores do crescimento. As dificuldades são normais, criámos um sindicato do zero, sem apoios e independente de qualquer poder instituído. Hoje ainda não temos uma estrutura que nos permita responder ao volume de trabalho que temos com a qualidade que pretendemos alcançar. Porém, para os enfermeiros, sim, continuamos a ser um sindicato próximo, low cost, numa lógica de utilizador pagador que faz atendimento personalizado.
Temos ainda tanto para fazer!
Estamos a desenvolver o Site de modo a constituir uma referência na informação relevante e útil para os enfermeiros, mas também para não enfermeiros. Estamos a reforçar os serviços jurídicos e os esclarecimentos aos associados. Hoje já temos contencioso judicial e já conseguimos resultados relevantes na defesa dos direitos dos nossos associados.