Dependências dos ecrãs e jogos de vídeo
Entrevista a Raúl Melo, Psicólogo, Coordenador da Unidade de Prevenção e Promoção da Saúde do ICAD.
A era digital oferece-nos infinitas possibilidades, mas também novos desafios. A dependência de ecrãs e jogos de vídeo é uma realidade crescente, com graves consequências para a saúde mental e bem-estar social. Nesta entrevista, o psicólogo Raúl Melo, especialista em saúde, educação e intervenção comunitária, e coordenador da Unidade de Prevenção e Promoção da Saúde do ICAD (Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências), traça-nos um retrato da situação e revela-nos formas de prevenção e combate a este problema.
De que forma podemos definir a dependência do ecrã e dos jogos de vídeo e quais são os principais sinais e sintomas de que uma pessoa pode estar dependente?
O jogo tem uma coisa complicada, que é haver uma maior tolerância social em relação a este comportamento. Em relação às outras dependências há uma reatividade natural das pessoas. Em relação ao jogo, há uma tendência a considerar-se que é uma coisa má, mas é passageira e a coisa vai ao sítio. Aquilo que à partida é mais significativo é que uma pessoa que tem um problema de jogo raramente reconhece que tem um problema de jogo. Nega e vai dizendo que o problema não é tão grande quanto isso. O que é certo é que, para todos os efeitos, de facto, do ponto de vista financeiro, isso é visível. Existem impactos significativos na dinâmica familiar. Frequentemente existem impactos do ponto de vista do bem-estar psicológico do indivíduo, porque o stress e a tensão que estão associados às perdas ou à pressão de recuperar dinheiro perdido altera todo o equilíbrio psicológico e físico da pessoa. Normalmente existem compromissos que começam a ser postos em causa e isto aplica-se igualmente também numa situação de videojogo. Ou seja, há coisas que são da minha responsabilidade e que eu deixo de conseguir corresponder porque estou preocupado ou porque estou focado noutra atividade. Normalmente há um isolamento social significativo porque eu começo a selecionar as pessoas com quem me dou, sobretudo escolhendo aquelas que serão menos críticas para o meu comportamento. Procurarei estar mais com pessoas que têm comportamentos semelhantes ao meu e evitar aquelas que à partida possam apontar-me o dedo. No extremo, isso significa chegar ao ponto de colocar relações em causa.
Isto aplica-se ao jogo, mas também à dependência do ecrã?
Sim, aplica-se. Ou seja, a questão da atividade que é geradora de dependência é que ela começa por ser uma atividade perfeitamente enquadrada no dia a dia da pessoa. Mas normalmente aquilo que acontece (chama-se a isso o fenómeno da tolerância) é que aquilo que eu fazia antes deixa de ser suficiente para proporcionar o prazer de que eu estou à procura. Portanto, preciso de mais ou de mais intenso, ou preciso de qualquer coisa diferente. No que diz respeito ao jogo o limite é muito ténue entre se o jogo é uma questão de competência ou uma questão de sorte. O lado complicado é que o apelo invariavelmente leva a um desequilíbrio. Sobretudo as pessoas que são mais vulneráveis são aquelas que são mais impulsivas e pessoas que, por traço de personalidade, são naturalmente instáveis, aceleradas ou agitadas, mais facilmente desenvolverão problemas ligados a este tipo de comportamentos.
Era precisamente a pergunta que lhe ia fazer. Quais os fatores de risco? Desde logo esse, o da personalidade. Mas não é difícil de detetar esses sintomas, mesmo para quem observa, dada a quantidade de tempo que nós temos de passar em frente a ecrãs a trabalhar, por exemplo?
É. Por isso é que os sinais de instabilidade emocional são tão importantes. Normalmente, quando a situação vai ficando mais extrema, o lado depressivo é normalmente o gatilho, ou seja, é quando as pessoas assumem e partilham com os outros que não estão bem. Agora, é como diz, como está muito mascarado dentro daquilo que é a prática do dia a dia, torna-se mais difícil para as pessoas externamente aperceberem-se do que se está a passar.
Um dos estudos mais recentes diz que cerca de 15 a 20% dos jovens poderão ter dependência dos ecrãs. Parece-lhe um número razoável que corresponderá de facto à realidade?
Confesso que parece-me excessivo. Se estivermos a falar de jogo problemático, aí sim, e acho que já é preocupante. Agora, assumir que um em cada cinco tem uma dependência de videojogos, acharia um exagero.
Que opções de tratamento existem para as pessoas com dependência do ecrã e do jogo?
Ora bem, essa é uma questão importante. Estamos a falar de uma realidade que está a emergir. Os nossos serviços de tratamento na área das dependências foram desenhados para resposta a adultos e a substâncias. O que nós estamos a perceber é que neste momento é necessário responder a uma população mais jovem e para questões que não têm a ver com substâncias. As respostas existem, as equipas estão formadas e treinadas para trabalharem nesta área, mas a transição ainda continua a precisar de ser feita. A maior parte das vezes, quando estamos a falar de jovens, aquilo que nós sugerimos é que sejam as equipas de prevenção que existem em todos os distritos, mas que estão focadas na população mais jovem, a fazer esse acompanhamento. Os profissionais que trabalham nestas equipas estão mais ligados à área da psicologia. A abordagem é menos clínica, está mais centrada numa perturbação da adolescência. Aquilo que se vai fazer é ajudar este miúdo, que está numa fase mais atribulada, a encontrar o seu caminho. O que não quer dizer que em alguns destes casos não haja já a necessidade também de uma resposta mais medicamentosa, porque a ansiedade que está associada a não poder manter o comportamento é muito grande.
E onde é que as pessoas e familiares podem encontrar ajuda e apoio para lidar com estas dependências?
Eu aí recomendo a linha 14 14, que funciona num horário normal de atendimento (10h às 18h), para orientar as pessoas. Esta linha pode facilmente recomendar a estrutura mais próxima da área da residência. O SNS 24 também já poderá fazê-lo. No site do ICAD, na área do cidadão, existe informação sobre as estruturas existentes. Uma terceira via passará sempre pelos cuidados de saúde primários. O contacto com o médico de família pode ser sempre um primeiro passo para se iniciar um processo.
Que medidas podem ser tomadas para prevenir o desenvolvimento destas dependências e qual o papel da família, da escola e da comunidade nessa prevenção?
A resposta é complexa, sobretudo porque nós estamos a falar de um comportamento que é socialmente aceite e em que muitas vezes os miúdos assistem aos pais a tê-lo. Embora haja muitos jovens e adolescentes a jogarem, a média de idades do jogador problemático que pede ajuda está nos 30 e tal anos.
Até porque essas gerações, como a minha, que já tenho mais de 40 anos, já tiveram computadores e jogos de vídeo desde cedo.
Tal e qual. Agora, aquilo que eu acho fundamental é a noção do equilíbrio.E o equilíbrio pressupõe perceber que estes recursos são extremamente importantes para nós: jogar é fundamental, ajuda-nos a desenvolver uma série de competências, é ótimo como refúgio relativamente a um conjunto de coisas, está ótimo, fantástico. A única questão que se coloca aqui é: consigo eu ter regulação? E a regulação pode ser auto, posso ser eu a conseguir regular-me e, portanto, eu dizer que vou jogar duas horas e não jogo mais que duas horas. Ou eu posso não ter essa capacidade, e então tem que ser hetero, tenho que acordar com quem está perto de mim, que às duas horas me começa a chatear. Isto pode ser negociado com os pais, definir regras, consequências. Ser mau não é uma tarefa fácil para os pais. Portanto, temos de ajudar os pais a ser firmes.
Por outro lado, ajudar os pais a perceber que devem interessar-se pelos jogos dos filhos. Porque se eu não sei o que é que eles estão a jogar, eu também não sei o que é que posso pedir-lhes. É fundamental eu interessar-me. Se possível, às vezes até jogar uma ou duas vezes com ele para perceber qual é a dinâmica, porque é que aquilo é tão interessante para ele. Outra coisa importante, sobretudo para os pais dos mais novos, é não deixar inverter o ciclo das coisas. Ou seja, jogar é um bónus, um prémio, é um direito de ter contacto com o prazer. Mas eu só tenho esse direito depois de cumprir com as responsabilidades.
A componente coletiva é também importante. Joga, joga com outras pessoas, estabelece a tua rede, mas da mesma maneira que tu estás com os teus amigos na rede, encontra-te com eles fora do computador. Equilíbrio entre a rede social digital e a rede relacional afetiva.
Depois, o jogo a dinheiro está montado, do ponto de vista do algoritmo, para que seja progressivo. Eu vou acreditar, num primeiro momento, que sou muito bom, e só depois é que eu começo a perder. Há que preparar e trabalhar os miúdos nesse sentido.
Para não sermos apanhados depois na armadilha que os jogos nos tentam criar. Agora, não querendo ser minimamente moralista ao fazer esta pergunta, mas quando os pais começam desde cedo a utilizar os ecrãs para entreter e sossegar as crianças, torna-se depois mais difícil retirá-los.
Isso é muito verdade, e por isso é que eu estava a dizer há bocado que a questão é precoce. Ou seja, nós estamos quase a dizer que temos de trabalhar com pais de crianças com um ano ou dois. Estamos a dizer que a utilização do ecrã é muito natural no sentido de acalmar e de tranquilizar a criança, claramente. O que me parece aqui muito importante é ajudar esses pais a perceber como é que atingem o equilíbrio? Eu posso perceber claramente que as questões sociais de ter uma criança a fazer uma birra desgraçada num restaurante possam justificar que o ecrã seja entregue para que a criança acalme. Eu percebo isso, percebo mesmo. Mas é importante trabalhar-se muito no sentido de restabelecerem os equilíbrios. Portanto, deem os tablets, mas ao mesmo tempo ponham o papel e o lápis à frente do miúdo, para que ele possa sentir o contraste.
Ao nível do ICAD, isto já é um problema que vos faz equacionar fazer algum tipo de campanha de comunicação a nível nacional? Acham que se justifica e que poderá ser uma boa estratégia?
Nós estamos já a trabalhar isso do ponto de vista da prevenção. Nós temos um programa que é o “Eu e os Outros”, que está a ser aplicado nas escolas, maioritariamente de segundo, terceiro ciclo e secundário. E aquilo que fizemos foi criar já materiais dentro desse programa para abordar precisamente os temas que têm a ver com os comportamentos aditivos sem substância. E, por exemplo, aí nós temos uma parceria com o Centro Internet Segura para conjugar as nossas preocupações com o videojogo, com as preocupações que eles têm no que diz respeito às questões do cyberbullying, das fake news, do discurso de ódio, etc. É um material que está disponível para ser trabalhado em sala de aula e, de preferência, para ser integrado no Programa de Educação para a Cidadania.
Agora, por aquilo que o João estava a dizer, e muito bem, acho que é muito importante desenvolver também materiais para os mais novos e o primeiro ciclo precisa de materiais deste género. As famílias também para trabalhar um bocadinho, para consciencializar e para proporcionar estratégias, e isso são coisas que estão na nossa agenda para virem a ser desenvolvidas no próximo triénio.
A Inteligência Artificial
Eu queria só acrescentar que o recurso à inteligência artificial vai-nos trazer coisas para as quais nós temos de pensar se estamos preparados do ponto de vista dos nossos valores e do nosso funcionamento para ter aquele recurso nas mãos. Quando a manipulação de imagens passa a ser uma coisa que pode ser feita com uma aplicação de livre acesso, ou quando a manipulação de texto passa a ser feita dessa maneira, tudo o que pode ser desenvolvido no sentido da alteração da realidade, é preocupante. Tudo isto significa que nós temos que muito rapidamente tornar claro que quando se está a disponibilizar um recurso com a importância que a inteligência artificial vai ter para a nossa sociedade, temos de estar a criar simultaneamente os recursos que protejam e que preparem as pessoas para a sua utilização.
E isso está a acontecer?
Não, não está a acontecer. As pessoas estão muito preocupadas com consequências económicas na perspetiva dos empregos, do futuro, das máquinas substituírem os humanos. Eu acho que esse é um ângulo, mas não é o mais importante. Eu acho que o ângulo mais importante é como é que as relações entre as pessoas vão mudar com base no emergir deste recurso. Eu diria que é muito importante lançar-se este alerta no sentido de ser necessário trazer para o plano da reflexão em termos sociológicos e psicológicos estas mudanças que vão acontecer nas relações entre as pessoas, quando passamos a ter eventualmente um recurso que nos substitui em algumas coisas.
Uma área de especialidade da inteligência artificial vai ser a capacidade de ler sinais e interpretar sinais. Portanto, quando eu estou em interação com uma máquina, ela vai, pelas respostas que der, perceber um conjunto de coisas. E Isso pode ser: atenção a este moço que está em risco de saltar do quinto andar. Do lado da saúde mental, isto é muito importante. Mas torna-se muito preocupante quando eu acredito que a máquina sozinha vai impedir que essa pessoa salte do quinto andar. Esta perspetiva de não confundir a capacidade que a máquina vai ter de nos ajudar a interpretar sinais com aquilo que à partida é a compreensão e a empatia que se deseja, deve-nos preparar para dizer: cuidado com as expectativas que vocês estão a construir sobre aquilo que a inteligência artificial vai trazer. E acho que isso é um tema importante a pôr em cima da mesa.
Sem dúvida. Estará a tecnologia também a fazer-nos, mais uma vez, olhar para a importância de características intrinsecamente humanas que só as pessoas podem ter.
É isso mesmo. Aquilo que me parece importante, e fechamos assim o ciclo desta nossa conversa, é que nós temos de preocupar-nos significativamente com a indústria do recreativo, porque se as pessoas vão ter mais tempo, as consequências de ter mais tempo podem ser preocupantes.