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“É preciso mais empatia e bondade no mundo e menos desigualdades sociais”

Nesta entrevista, Claudete Teixeira deixa muito clara a sua paixão pela proteção dos direitos das crianças e destaca a importância de criar um futuro mais promissor para elas. A advogada, experiente nesta área, enfatiza a importância de um sistema judicial mais ágil e eficaz na proteção das crianças, alertando para casos de abuso psicológico, sobretudo em famílias onde menos se esperaria, ou seja, nas classes socioeconómicas mais elevadas. Claudete Teixeira manifesta ainda preocupação com os desafios da era digital, defendendo a necessidade de proteger a saúde mental das crianças e combater o vício em dispositivos eletrónicos.

O Dia Mundial da Criança é uma ocasião para celebrar a infância, mas também para refletir sobre os desafios que as crianças enfrentam. Quais são, na sua opinião, esses principais desafios hoje em dia?

A resposta a essa pergunta depende muito do âmbito de aplicação que lhe dermos. Se pensarmos que há crianças a morrer todos os dias, vítimas de guerras ou de fome, percebemos que, ao dia de hoje, há milhares de crianças vítimas de tudo o que está errado no mundo, perante a nossa falta de ação global. Se apontarmos o foco para a nossa micro realidade eu diria que um grande desafio é não permitir que as nossas crianças e jovens se tornem totalmente dependentes dos aparelhos eletrónicos, que eu acho que é um assunto extremamente sério e não sei se lhe está a ser dada a devida valoração.

Como é que o Direito das Crianças pode ajudar a proteger os direitos das crianças e garantir o seu bem-estar?

O direito das crianças tem evoluído bastante e nós, na União Europeia, temos um direito das crianças bastante protetor. Mas, atendendo a que a sociedade está em constante evolução, o direito tem de conseguir acompanhar essa evolução, em tempo útil. Voltando ao tema dos aparelhos eletrónicos, considero extremamente preocupante ver bebés e crianças completamente alheadas de tudo o que os rodeia apenas vidrados nos telemóveis. Não sei se estou a exagerar, mas isto faz-me lembrar que no tempo dos meus pais era normal a venda de tabaco à porta das escolas. Hoje isso seria impensável. Espero que rapidamente também se perceba que é impensável estar a viciar crianças em aparelhos eletrónicos. A saúde mental é tão ou mais importante que a física.

Que ações defende que podem ser tomadas para criar um mundo melhor para as crianças?

Acho que não sei responder a essa pergunta porque para se conseguir um mundo melhor para as crianças era preciso que todos nós, globalmente, fossemos melhores. É preciso mais empatia e bondade no mundo e menos desigualdades sociais. Quando há crianças a dizer a outras crianças coisas como: “preto”, “vai para a tua terra” ou “o meu pai tem muito dinheiro e o teu não”, é porque os adultos não estiveram à altura de proteger estas crianças. Nem as que verbalizam estas coisas, nem as que são vítimas destes comentários. Quando, nos dias de hoje há crianças no mundo a morrer à fome ao lado da abundância e desperdícios de outros, está tudo errado. Quando há crianças vítimas de guerras, porque continuam a existir guerras por poder e por território, percebemos que se calhar o ser humano não evoluiu como deveria.

“Para se destruir pessoas não é preciso muito, basta destruir-lhes a saúde mental. É o que acontece todos os dias a muitas das nossas crianças e jovens”

Como avalia o panorama atual da proteção dos direitos das crianças em Portugal?
Acho que existe uma grande sensibilização para a proteção dos direitos das crianças no nosso país. Mas ainda há um grande caminho para percorrer. Quando no ano 2024 há um tribunal superior em Portugal a validar a atuação de um progenitor que deu uma bofetada na cara de uma criança de quatro anos de idade, porque a criança lhe desobedeceu, e a quem regularmente chamava de porca e dizia que ia levar nas trombas, fico apreensiva. A nossa lei é adequada a proteger os direitos das crianças, mas é preciso que, na prática quem é chamado a investigar, a verificar no terreno o que se passa e a decidir, consiga ter tempo, meios, e capacidade para o fazer.

Eu sinto que existe uma real preocupação com as suspeitas de maus-tratos a crianças, quando estas estão integradas em agregados familiares mais desfavorecidos, mas depois parece existir dificuldade em sinalizar e resolver outras situações que são igualmente graves mas não são tão visíveis a olho nu. Como são os casos das crianças que estão integradas em meios socioeconómicos mais confortáveis, com progenitores por vezes quadros superiores, que sabem dizer aquilo que os outros querem ouvir e conseguem manipular as situações – muitas vezes doentes mentais não diagnosticados ou não tratados – e que, no dia a dia, de uma forma mais subtil, mas constante e destruidora da saúde mental dos filhos, exercem a sua parentalidade de uma forma completamente errada, usando os filhos como armas para atingir o outro, e sem qualquer capacidade de priorizar os interesses dos filhos. Nesses casos o foco é apenas perturbar a vida do outro, sendo as decisões tomadas, não com base no que é melhor para os filhos, mas para que o outro progenitor não tenha o que quer, não fique contente, não seja feliz. E isto é também muito preocupante.

Quais são os principais desafios para um(a) advogado(a) que lida com situações litigiosas que envolvem crianças?
Um grande desafio é tentar demonstrar ao tribunal que um pai/ mãe como os que acima referi são abusivos e maltratam os filhos e obter ajuda em tempo útil. Quando um pai/mãe agride fisicamente um filho e deixa marcas físicas poderá ser fácil provar. Quando um progenitor maltrata psicologicamente uma criança e a manipula é extremamente difícil de provar – até porque o agressor vai sempre desmentir essa situação. O que cria um litígio judicial que perdura anos e que tem de ser gerido de modo a não aumentar ainda mais as retaliações e o conflito, o que não é fácil. Ora estando em causa os direitos e a proteção de crianças, que estão expostas a tudo isto, a situação é muito delicada. Sendo que, muitas vezes, a agressão depois também passa por contarem às crianças o que se passa em tribunal, mostram-lhes as peças processuais, transmitem-lhes receios e ideias fabricadas de modo a tentar criar alianças com os filhos contra o outro progenitor, usando-os como soldados na sua guerra. Tudo isto são maus-tratos às crianças.

“A consciência de que precisamos de ajuda, e o recurso a essa ajuda, é um claro sinal de sanidade mental e de preocupação para com os nossos filhos”

Imagino que já tenha lidado com vários casos sensíveis. De que forma é que isso a marcou profissionalmente?
Eu fico sempre perturbada quando vejo as crianças a ser vítimas dos próprios pais. As pessoas que mais as deviam proteger. As mesmas pessoas que, na primeira oportunidade, e com toda a confiança, diriam que dariam a vida pelos filhos. Fico perturbada quando não se provam os abusos porque as crianças são muito pequenas e a sua voz não é suficientemente forte para ser ouvida e o pai/mãe que a tenta defender ainda corre o risco de ser acusada(o) de estar a levantar falsos testemunhos. Há pais que mesmo sabendo que os filhos são mal tratados pelo outro progenitor nada fazem porque têm medo de não conseguir provar os maus-tratos e ser acusados de estar a mentir e depois verem-se envolvidos em processos judiciais muito complicados. E fico perturbada quando vejo pais/ mães durante anos a envolver os filhos nos seus conflitos e por muito que sejam advertidos das consequências nefastas da sua atuação não são capazes de deixar de o fazer nem pedem ajuda especializada para encontrarem ferramentas para conseguir fazê-lo. Para se destruir pessoas não é preciso muito, basta destruir-lhes a saúde mental. É o que acontece todos os dias a muitas das nossas crianças e jovens.

Que conselhos daria aos pais e cuidadores sobre como proteger os direitos das suas crianças?
Aos pais que estão a passar por processos de rutura na sua relação e de conflito parental, o meu conselho é que procurem a ajuda de um advogado conhecedor da área da família e das crianças. E que procurem a ajuda de um psicólogo para os ajudar e orientar na melhor abordagem a ter para com os filhos e o outro cônjuge. Nós temos de ter noção que precisamos de ajuda e isso não é uma fraqueza, pelo contrário. A consciência de que precisamos de ajuda, e o recurso a essa ajuda, é um claro sinal de sanidade mental e de preocupação para com os nossos filhos, o que é sempre positivamente valorado. E, se for possível essa opção, que usem o recurso à mediação familiar, que poderá ser facilitadora dos acordos a alcançar.

Aos cuidadores, que estejam atentos aos sinais das crianças e que não tenham medo de falar. Nunca devemos ser indiferentes ao sofrimento alheio, muito menos ao dos que não se conseguem defender sozinhos. As crianças tendem a exteriorizar, à sua maneira, o seu sofrimento. É preciso estar atento aos sinais.

De que forma entende que a sociedade em geral pode contribuir para a defesa dos direitos das crianças?
Continuando na senda do que estamos a falar, quanto ao conflito parental, era importante que a família, os amigos, os conhecidos, os que leem as publicações nas redes sociais (porque também temos disto: pais que expõe os filhos nas redes sociais para denegrir as competências parentais do outro) que não acicatassem o conflito aplaudindo, validando ou reforçando os comentários depreciativos que os pais vão fazendo um do outro. Muito menos o façam de modo que as crianças ouçam. Mas, ao invés, assumam uma postura construtiva, olhando para o futuro e com o foco na solução.

“Espero que rapidamente também se perceba que é impensável estar a viciar crianças em aparelhos eletrónicos. A saúde mental é tão ou mais importante que a física”

Que mensagem gostaria de deixar para os futuros advogados que desejem trabalhar na área do Direito das Crianças? Que façam formação especifica nesta área e não litiguem em processos de regulação do exercício das responsabilidades parentais como se estivessem a litigar em processos de assaltos à mão armada.

Existe alguma mensagem final que gostaria de deixar aos nossos leitores?
Cada um de nós terá uma ideia própria acerca do que é uma prática parental adequada e o que é melhor para os nossos filhos. O que eu acho importante é que em certos momentos tenhamos a capacidade de questionar a nossa verdade e assumir a possibilidade de podermos não estar certos. Tenhamos a capacidade de olhar para a situação pelo ponto de vista do outro e pelo ponto de vista da criança. E, por fim, que se tenha a capacidade de evoluir no pensamentoenasdecisões. Eistoémuitodifícil.Muitasvezes temos ideias cristalizadas e estamos fechados na nossa razão. E ninguém quer assumir que pode estar errado. Até porque,

ainda que inconscientemente, isso é sentido como uma derrota. E ninguém quer perder. Na nossa cabeça está implícita ideia de quem perde é fraco (ou mais fraco). Se pensarmos que, no caso do conflito parental, estão a digladiar-se duas pessoas que entraram em rutura, muitas vezes com mágoas e rancor, é fácil perceber que nenhum dos dois quer sentir que perdeu e o outro ganhou. E, de repente, o conflito já nada tem que ver com aquilo que é melhor para os filhos, mas apenas com o facto de ninguém querer ceder e ninguém querer que o outro sinta que ganhou. E é isto que não pode acontecer. Temos de conseguir ser superiores a isto. Pelos nossos filhos.