Cozinhar é cuidar, partilhar, criar memórias que ficam para sempre. Nesta entrevista, Sónia Melo fala-nos do significado do Dia Mundial do Cozinheiro e da evolução que viveu entre as exigências do ofício e a serenidade de quem encontrou no respeito pelo tempo e pela terra o verdadeiro sabor do sucesso. No horizonte da chef açoriana permanece a vontade de continuar, sempre, a viver em coerência com aquilo em que acredita.
O Dia Mundial do Cozinheiro lembra-nos que esta profissão vai muito além da cozinha. Hoje, um cozinheiro é também gestor, comunicador, curador cultural e até ativista da sustentabilidade. Em que medida se revê nesse retrato mais amplo?
Sem dúvida que a profissão de cozinheiro hoje vai muito além da técnica – é muito mais do que cozinhar: é comunicar, representar uma cultura e valorizar o território. Não me identifico com o termo ativista, porque acredito que o respeito pelos produtos e pela natureza deve ser algo natural, não uma bandeira.
Gosto de pensar que sou uma espécie de embaixadora dos sabores e das tradições, uma contadora de histórias — mas sem rótulos. Trabalho com consciência e amor pelo que a terra me dá — e é isso que quero transmitir em cada prato.

Que significado pessoal tem esta data para si, e que mensagem gostaria de partilhar com quem celebra a 20 de outubro o seu próprio percurso na gastronomia?
Este dia é, para mim, um momento de reflexão — uma celebração de gratidão e de paixão. Recordo o caminho percorrido, nem sempre fácil, mas cheio de sentido, e todas as pessoas que se cruzaram comigo ao longo destes anos. Vejo a profissão de cozinheiro muito além da técnica: nós cuidamos, partilhamos e criamos memórias que ficam para sempre. A todos os que celebram este dia, deixo uma mensagem simples — nunca percam a paixão e o foco que vos trouxe até aqui. Nunca deixem apagar a chama que vos fez começar, porque é essa paixão que dá sabor a tudo o resto. A cozinha é exigente, mas também generosa — devolve-nos o dobro quando fazemos tudo com verdade e com amor.
O que a sua experiência como chef a ensinou sobre a vida, para além da cozinha?
A cozinha ensinou-me praticamente tudo o que sei sobre a vida. Ensinou-me que o tempo é o ingrediente mais valioso — tanto no prato como nas relações humanas. Que o erro faz parte do processo e que a humildade é essencial, porque estamos sempre a aprender. Mostrou-me também que as coisas mais simples podem ser as mais extraordinárias, se forem feitas com dedicação e propósito.

O segredo está em fazer tudo com alma — dentro e fora do prato. E, acima de tudo, ensinou-me a importância de saborear o momento presente: tal como um bom prato, a vida também deve ser apreciada devagar, com todos os sentidos.
Como foi formando, ao longo do tempo, a sua ideia pessoal de sucesso? Há episódios ou momentos menos visíveis que tenham sido decisivos no seu percurso, mas que geralmente escapam aos holofotes das reportagens?
No início, achava que ter sucesso era ter reconhecimento — ver o meu trabalho divulgado, ser convidada, ganhar prémios. A minha ideia de sucesso foi mudando ao longo dos anos. Hoje vejo que o verdadeiro sucesso está em conseguir viver daquilo que amo, com respeito por mim mesma e pelos outros. O sucesso agora é ter coerência — é chegar ao fim do dia com a sensação de dever cumprido e com o coração tranquilo. Os bastidores, o que está por trás e ninguém vê — as horas infinitas de preparação, o silêncio depois de um serviço exaustivo e as dúvidas — também fazem parte. São esses momentos que me lembram o quanto vale a pena continuar.

Se tivesse de preparar um menu onde cada prato representasse uma dificuldade da insularidade, que ingredientes ou técnicas utilizaria para ilustrar esse caminho?
Começaria com uma entrada feita de simplicidade e adaptação
- talvez algo criado com o que a terra e o mar oferecem, porque viver numa ilha é isso mesmo: aprender a fazer mais com o que temos. O prato principal seria de resistência e criatividade
- técnicas como a conservação, a fermentação ou as curas lentas, que simbolizam a espera, o isolamento e a capacidade de transformar limitações em sabor. E terminaria com uma sobremesa leve, que representasse a esperança e o orgulho de ser ilhéu — algo doce, mas com um toque de sal, como o mar que nos rodeia. Seria um menu que prova que, mesmo com limitações, há sempre beleza e sabor em viver numa ilha.
Qual o papel dos cozinheiros na valorização da cultura local e dos pequenos produtores?
Somos uma ponte entre quem cultiva e quem consome, entre a terra, o mar e o prato. Cada vez que escolhemos um produto local, estamos a contar uma história — de trabalho, de tradição e de identidade. Nos Açores, essa ligação é ainda mais forte, porque cada ingrediente carrega o peso da distância e o orgulho da origem. Não se trata apenas de cozinhar bem, mas de dar visibilidade a quem, muitas vezes, trabalha em silêncio e garante que a autenticidade se mantém viva. É um compromisso de respeito e continuidade: sem produtores, não há cozinha com alma.

O reconhecimento externo, através de prémios e distinções, traz-lhe certamente muita satisfação e é uma prova recorrente do impacto do seu trabalho. Além desses momentos tão especiais, como define o reconhecimento que vem de dentro?
Os prémios e distinções são sempre motivo de orgulho — representam o reconhecimento público de muito trabalho, dedicação e entrega. Mas o verdadeiro reconhecimento, para mim, vem de dentro. Está na serenidade de saber que dei o meu melhor, mesmo quando ninguém viu. Está nos sorrisos dos clientes, nas mensagens que recebo depois de um jantar, nas histórias que ficam. Esse é o tipo de reconhecimento que não se mede nem se exibe — sente-se. É o que me faz continuar, mesmo nos dias mais difíceis, porque me faz lembrar que estou a viver em coerência com aquilo em que acredito.
No futuro próximo, imagina-se mais a aprofundar o seu projeto atual ou a expandi-lo para novas áreas?
Não me imagino a crescer em largura, mas sim em profundidade. Este projeto é uma extensão de mim — nasceu da minha história, das minhas memórias e da minha forma de ver a vida. Se começasse a expandi-lo apenas por crescer, deixaria de ser eu. E nessa altura, tudo deixaria de fazer sentido. Prefiro continuar fiel ao que me move: criar experiências autênticas, com alma e verdade, que respeitem o meu ritmo e o dos clientes. Acredito que o verdadeiro crescimento acontece quando conseguimos manter a essência, mesmo com o passar do tempo.

Se pudesse escrever uma carta para a sua Sónia do passado, iniciada na blogosfera, que aviso, conselho ou encorajamento lhe deixaria?
Dir-lhe-ia para confiar e acreditar mais em si, e para ter força e coragem quando estas falham; para não ter medo de seguir a sua intuição — mesmo quando o caminho parece complicado e diferente do que os outros esperam, e mesmo quando sentir que não terá grandes apoios. Lembrá-la-ia de que a paixão que a levou a criar um simples blog um dia se tornará num projeto com alma, capaz de tocar pessoas nos quatro cantos do mundo. E, acima de tudo, dir-lhe-ia para não se perder nas pressas nem nas comparações. Cada um tem a sua essência e nada acontece por acaso. Tudo acontece no tempo certo. Sónia, o segredo está em continuares a fazer as coisas com verdade e autenticidade — mesmo quando sentires que estás sozinha. Porque não estás.

Peço-lhe agora que pense num convidado improvável. Uma figura histórica, um artista, escritor ou personagem de ficção. Como seria um jantar perfeito para esse convidado na sua cozinha?
Convidaria Natália Correia — pela irreverência, pelo carisma, pela alma açoriana e pela força da palavra. Serviria um jantar feito de sabores e memórias, onde a poesia se encontrasse com a cozinha. Um jantar simbólico e feminino: uma entrada leve e alegre, com abacate e o nosso belíssimo atum em conserva, lapas, pão caseiro; um peixe ao sal com batata e pimenta da terra, acompanhado por um vinho local. A sobremesa seria algo que limpasse o palato — um pudim de chá verde e ananás caramelizado. Imagino a conversa intensa, poética, com gargalhadas e silêncios cheios de sentido. Seria um encontro entre duas formas de expressão — a palavra e o sabor — unidas pela mesma vontade de eternizar a alma das ilhas.
| “Sou da ilha das línguas de fogo. Com elas aprendi a metrificar o espírito. O indizível” Natália Correia *Natália Correia, escritora e figura incontornável da cultura portuguesa com raízes açorianas, foi a personagem escolhida por Sónia Melo para homenagear na sua cozinha. | 





