Entrevista Justiça

“A Justiça deve ser assegurada e garantida de forma equitativa, célere e eficaz para todos os cidadãos” 

Paulo Teixeira, Bastonário da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE), fala-nos sobre o reconhecimento da profissão, as alterações à lei dos atos próprios e as prioridades para o futuro da Justiça. 


Foi eleito Bastonário da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE) há pouco mais de dois anos. Na altura, numa entrevista à Sollicitare (revista da própria Ordem), considerava que estava a faltar um “reconhecimento social da profissão e da própria Ordem”, admitindo que continuavam a ser vistos com uma espécie de “parente pobre” na área do Direito. Considera que, neste momento, já se olha para esta classe de outra forma? 

Na verdade, a OSAE tem uma história comprovada de, pelo menos, 500 anos. São cinco séculos em que muito mudou e, certamente, muito vai continuar a mudar. E temos vindo a demonstrar, principalmente nas últimas décadas, a nossa capacidade, o nosso crescimento. Os Solicitadores e os Agentes de Execução são hoje profissionais altamente qualificados e comprometidos em oferecer soluções jurídicas eficazes e confiáveis, sempre com um objetivo em vista: servir o cidadão. Prova disso é que, para se ser Solicitador e/ou Agente de Execução, é necessária uma licenciatura em Solicitadoria ou em Direito, o que funciona como garantia acrescida da qualidade destes profissionais. 

Referir ainda que, desde 2003, passámos a ser um parceiro e um aliado estratégico de vários governos, de vários partidos, e isto comprova, também, a importância dos Solicitadores e dos Agentes de Execução – e da própria Ordem – no seio da Justiça.  

A OSAE tem também evoluído no modo como comunica e interage com a sociedade, o que muito contribui para o aumento do reconhecimento social das profissões que representa. Prova disso é a parceria com a RTP e com o programa “A Nossa Tarde”, espaço em que o Solicitador é, quinzenalmente, convidado a esclarecer o cidadão relativamente a matérias jurídicas que acompanham a atualidade. Para além de esta parceria contribuir para elevar as profissões de Solicitador e de Agente de Execução, ajuda a aproximar ainda mais estes profissionais aos cidadãos. 

Temos, portanto, a clara noção de que este não é um processo estanque. É sim um processo contínuo de melhoria. Mais do que qualquer reconhecimento, o que importa verdadeiramente é saber que realizamos um trabalho importantíssimo em prol da Justiça, das empresas e do cidadão. 


Em que situações é que se pode, ou deve, recorrer a um Solicitador ou Agente de Execução? 

Os solicitadores estão aptos para representar, aconselhar e acompanhar pessoas, empresas e organizações públicas junto de órgãos da administração e tribunais ou quaisquer outras entidades ou instituições públicas ou privadas, nas áreas do Direito Civil, Comercial, Societário, Trabalho, Administrativo, Fiscal, Contra-ordenacional, Registos e Notariado. 

Um solicitador pode preparar e obter documentos junto dos serviços de finanças, câmaras municipais e outras entidades, de forma a garantir que determinado negócio cumpre todos os requisitos jurídicos. 

Pode também elaborar vários tipos de contratos como, por exemplo, contratos de compra e venda, doação, mútuo, hipoteca, penhor, arrendamento, comodato, sociedade, associação em participação, agência, franchising, consórcio, trabalho e empreitada, e pode também elaborar minutas de escritura, requerimentos e petições. Pode também recorrer a um Solicitador para autenticar documentos, reconhecer assinaturas, elaborar termos de autenticação e certificar assinaturas e traduções. 

Já os Agentes de Execução podem apresentar-se e ser nomeados em sociedade ou individualmente. Assumem as seguintes competências: assegurar todas as diligências do processo de execução, efetuar citações e notificações avulsas e promover despejos. Para o efeito, podem averiguar a localização de pessoas e do património pertencente aos executados, apreender e penhorar os seus bens, proceder à sua venda, entregando o respetivo produto aos credores. 

Os Agentes de Execução têm competência exclusiva para tramitar Procedimentos Extrajudiciais Pré-Executivos, os PEPEX. Trata-se de um processo muito expedito e económico. É apresentado pelos mandatários judiciais ou pelos credores. Visa averiguar a localização e o património dos devedores contra os quais exista um título executivo válido para este procedimento. A atuação dos Agentes de Execução promove o ressarcimento destas dívidas. Na falta de pagamento, o Agente de Execução, segundo as instruções do credor, insere o nome do devedor na respetiva lista pública ou transita o procedimento para processo judicial de execução. 

Os Agentes de Execução têm ainda competência para elaborar autos de verificações não judiciais qualificadas nos termos do artigo 494.º do Código de Processo Civil.  


Os novos estatutos das Ordens entrarão em vigor no próximo mês  de abril, mas a lei que altera o regime dos atos próprios dos advogados e dos solicitadores produz efeitos retroativamente a partir do início deste ano, ou seja, já está a vigorar. Este foi um tema bastante polémico e, também por isso, gostava de saber a sua opinião sobre as principais alterações. 

A OSAE manifestou, sempre, o seu desacordo quanto ao sentido e alcance da revisão quer do respetivo Estatuto, quer da lei dos atos próprios dos advogados e dos solicitadores, atentas as consequências nefastas que trarão para o funcionamento do sistema de Justiça e, sobretudo, para a salvaguarda dos direitos fundamentais. No que respeita à alteração à Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto – que define os atos próprios dos advogados e dos solicitadores e tipifica o crime de procuradoria ilícita – entendo que serão muitas e irreparáveis as consequências que a sua entrada em vigor vai trazer.  

Em primeiro lugar, a insegurança de um sistema em que os cidadãos confiam, sem se descortinar qualquer vantagem ou fundamento, incluindo os compromissos assumidos em sede de PRR, que, a este propósito, não podem funcionar como justificação. Depois, a desconsideração absoluta do sigilo profissional – pedra angular da relação entre cliente e respetivo mandatário, princípio estruturante de direito e regra ética de conduta.  

Em terceiro lugar, o regresso esperado, sob o incentivo desta alteração legislativa, das denominadas “cobranças difíceis”, que tanto tempo demorou a serem erradicadas da nossa sociedade e que são atentatórias dos mais elementares direitos, liberdades e garantias dos devedores. Com efeito, o alargamento e a flexibilização operados no âmbito da cobrança de créditos a entidades que passam a estar legalmente habilitadas, mas que não estão submetidas a regulação especial, a exigente formação e a particulares deveres de natureza deontológica, conduzirão a uma desproteção do cidadão, dos seus direitos e interesses, a uma diminuição da qualidade dos serviços prestados e a um aumento da conflitualidade. Também a revisão operada do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução desconsidera, de forma nítida e menos consentida, a função e a natureza da solução regulatória assente em Ordens profissionais e opera uma ingerência inadmissível na autorregulação destas associações públicas. Em especial, a criação de um órgão obrigatório de supervisão, em que os associados não têm a maioria, e a imposição de que o conselho superior integre um expressivo número de não associados. Esta situação constrange a própria função e natureza do modelo regulatório em vigor e, ao mesmo tempo, replica a atribuição de poderes públicos e de competências, necessariamente confluentes com as que as associações públicas profissionais exercem, a participantes desprovidos de conhecimento profundo da atividade a regular e das reais necessidades de ajustamento dos respetivos profissionais à legislação e à sociedade.  

Por outro lado, a previsão da remuneração obrigatória do estágio profissional, sem estarem garantidas as condições de operacionalização da medida, acaba por impossibilitar, ou pelo menos, dificultar substancialmente o acesso à profissão. Efetivamente, o estágio profissional é fundamental para a formação dos jovens associados, mas a exigência de remuneração tornará muito reduzido o número de patronos disponíveis, pois apenas as maiores sociedades terão essa capacidade. Em consequência, e contrariando os desígnios do próprio legislador, os cidadãos verão reduzir-se o número de profissionais qualificados, regulados e fiscalizados ao seu dispor, em troca do surgimento de novos profissionais pouco qualificados, não regulados e não fiscalizados. 


Os 50 anos do 25 de abril remetem-nos para um olhar sobre o passado e, seguramente, muitos balanços. Mas também, inevitavelmente, para o futuro do país e da nossa Democracia. A este respeito, quais considera que deverão ser as principais prioridades do próximo Governo (particularmente na sua área)?  

Os 50 anos do 25 de Abril oferecem uma oportunidade inestimável para refletir sobre o sistema de Justiça, porquanto a Justiça é um pilar fundamental da democracia e deve ser assegurada e garantida de forma equitativa, célere e eficaz para todos os cidadãos. 

Neste tempo de balanço, mas também de pensar o futuro, importa avaliar questões como o acesso à justiça, a eficiência dos tribunais e a capacidade do Sistema de se adaptar a uma sociedade cada vez mais complexa e em constante mutação. 

Ora, de entre as prioridades que o próximo Governo deve considerar, e são muitas, para garantir uma Justiça mais “justa”, saliento três. A primeira, e prioritária, é a revisão do regime do acesso ao direito, [também] com o propósito de tornar efetiva a possibilidade de o beneficiário da proteção jurídica dispor do patrocínio de solicitador e da intervenção do agente de execução. 

A segunda prende-se com o imperativo de proceder à revisão das regras processuais civis, que preveem o patrocínio judiciário obrigatório, por serem, para além de incoerentes e desconexas, inconciliáveis com o estatuto do solicitador. Em pleno, os solicitadores, nas ações declarativas, têm mandato em processo cujo valor não ultrapasse a alçada dos Tribunais de 1.ª Instância, enquanto nas execuções exercem mandato até ao valor da alçada da Relação. Por outro lado, representam as partes em processos de inventário, qualquer que seja o seu valor. Importa, pois, superar esta incoerência normativa e conciliar a disciplina do patrocínio judiciário obrigatório com o estatuto funcional, os requisitos de acesso à profissão e a formação superior dos solicitadores, em Direito ou em Solicitadoria. 

Como terceira prioridade assinalo a necessidade de reforçar o estatuto do agente de execução, garantindo, plenamente, a sua independência funcional relativamente a ambas as partes e revendo o seu sistema remuneratório, de forma a assegurar, por um lado, uma retribuição equitativa e adequada à elevadíssima responsabilidade que é legalmente chamado a assumir e, por outro, a robustecer a eficácia e a celeridade do processo de cobrança de dívidas, que tanto impacto tem na competitividade do nosso País.