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“A educação pode empoderar as crianças e os jovens”

Fátima Nunes é psicóloga clínica, psicoterapeuta de crianças e adultos e diretora-geral do Instituto do Desenvolvimento. Em entrevista à IN Corporate Magazine, alerta para os traumas muitas vezes silenciosos causados pelos maus-tratos, violência emocional, bullying e preconceitos como os que ainda persistem em torno do autismo — e aponta caminhos concretos para uma resposta mais humana e eficaz.

Em fevereiro deste ano, a APAV revelou dados que mostram que, em 2024, por dia, nove crianças e jovens sofreram de violência. Sabe-se que as vítimas têm, em média, dez anos e mais de metade são do sexo feminino. Que explicação encontra para estes índices?

Os índices alarmantes de violência contra as crianças e jovens podem ser atribuídos a uma série de fatores sociais, culturais e económicos. Entre as possíveis explicações, destacam-se aspetos como a desestruturação familiar, a falta de apoio emocional e a ausência de um ambiente seguro, que podem contribuir para que estas crianças e jovens se tornem vítimas de violência. Soma-se a isso a cultura de silêncio, em que muitas vítimas não se sentem à vontade para denunciar os abusos por medo, vergonha ou falta de confiança nas autoridades, o que acaba por perpetuar este problema. Outro fator relevante é a desigualdade de género, evidenciada pelo facto de mais de metade das vítimas serem do sexo feminino, o que reflete as desigualdades enraizadas na sociedade, onde meninas e mulheres são frequentemente mais vulneráveis a abusos.

Além disso, a falta de educação e de consciencialização, marcada pela ausência de programas voltados para os direitos das crianças e a prevenção da violência, contribui para a maior incidência de abusos, uma vez que tanto as vítimas quanto os agressores muitas vezes desconhecem as consequências legais e sociais desses atos. A pandemia de COVID-19, também, teve um papel significativo, ao aumentar as tensões familiares e o isolamento social, fatores estes que podem ter agravado as situações de violência doméstica e abuso. Todos estes elementos, entre outros, ajudam a explicar os elevados índices de violência contra crianças e jovens, sendo fundamental que a sociedade, as autoridades e as instituições atuem de forma conjunta para enfrentar e prevenir esta grave questão.

Que consequências trazem para a vida de uma criança ou de um jovem os atos de violência – física, psicológica ou emocional e sexual – que muitos sofrem ainda em tenra idade?

Os atos de violência sofridos pelas crianças e jovens podem ter consequências profundas e duradouras nas suas vidas. Entre estas consequências, destaca-se o trauma psicológico, que pode levar ao desenvolvimento de transtornos como o stress pós-traumático, a ansiedade, depressão e outros problemas de saúde mental, dificultando que as vítimas lidem com as suas emoções e experiências traumáticas. A violência, também, pode interferir no desenvolvimento emocional e social, comprometendo a capacidade da criança de formar relacionamentos saudáveis e de se integrar socialmente. Além disso, é comum o aparecimento de problemas comportamentais, tais como a agressividade, atitudes desafiadoras ou isolamento, o que pode impactar negativamente o desempenho escolar e as interações sociais.

O impacto académico é outra consequência significativa, pois o stress e a ansiedade resultantes da violência podem prejudicar a concentração, reduzir a autoestima e, em casos mais graves, levar ao abandono escolar. A vivência da violência ainda pode perpetuar ciclos, uma vez que crianças vítimas de maus-tratos têm maior probabilidade de se tornarem agressores ou de se envolverem em relacionamentos abusivos na vida adulta. Do ponto de vista físico, além das lesões imediatas, a violência pode ter efeitos a longo prazo, como o desenvolvimento de doenças crónicas, muitas vezes autoimunes, distúrbios do sono e transtornos alimentares.

O isolamento social, também, é uma consequência recorrente, já que muitas vítimas sentem vergonha ou se sentem estigmatizadas, evitando procurar apoio em amigos e familiares. Estas experiências traumáticas na infância podem comprometer a vida adulta, afetando a capacidade de estabelecerem relações saudáveis, alcançar a estabilidade profissional e lidar com os desafios do quotidiano. Diante de tantos impactos, torna-se evidente a importância de intervenções precoces e de um ambiente acolhedor e de apoio, que possibilite a recuperação e o desenvolvimento saudável das vítimas. É fundamental que a sociedade como um todo se mobilize para prevenir a violência e oferecer suporte adequado às crianças e aos jovens afetados.

“Experiências traumáticas na infância podem comprometer a vida adulta, afetando a capacidade de estabelecerem relações saudáveis”

Se houver o devido acompanhamento, há a possibilidade de estes danos serem mitigados ou tornarem-se inexistentes?

Sim, com o devido acompanhamento e suporte, há uma boa possibilidade de os danos causados pela violência poderem ser mitigados ou até mesmo eliminados. Diversas formas de apoio podem contribuir significativamente neste processo de recuperação. A terapia e o acompanhamento psicológico, por exemplo, são fundamentais para ajudar estas crianças e jovens a processar as suas experiências, desenvolver habilidades para enfrentar estes traumas e lidar com as emoções difíceis.

Além disso, programas de intervenção específicos, tais como os programas ligados à prevenção da violência e a promoção de competências sociais, são eficazes na construção da resiliência e no ensino de estratégias para lidar com este tipo de situações. O apoio familiar, também, desempenha um papel crucial. Quando os pais ou os responsáveis pela criança ou jovem estão envolvidos no processo de recuperação, especialmente com a ajuda dos programas que os orientem sobre como oferecer o suporte emocional que eles necessitam e criar um ambiente seguro, o impacto positivo na vida da criança ou jovem pode ser significativo.

Outro fator importante é a educação e consciencialização para estes assuntos. A educação pode empoderar as crianças e os jovens, ajudando-os a identificar as situações abusivas e como procurar ajuda quando necessitam. A rede de apoio formada pelos amigos, professores e outros adultos de confiança também é essencial, pois proporciona às vítimas um sentimento de segurança, reduzindo o isolamento.

A criação de ambientes positivos, tanto em casa como na escola, é fundamental para o bem-estar e o desenvolvimento saudável das crianças. Embora os efeitos da violência possam ser profundos, a combinação entre uma intervenção adequada e o suporte contínuo, oferece às vítimas a oportunidade de superar as suas experiências traumáticas e levar uma vida saudável e produtiva. A recuperação é um processo que varia de pessoa para pessoa, mas com o apoio certo, muitos conseguem se reerguer e prosperar.

Um estudo mostrou que pessoas autistas estavam expostas ao dobro da violência física do que pessoas não-autistas, mas têm muito mais dificuldade em denunciar e encontrar apoio acessível. Ou seja, nas escolas estão ainda mais vulneráveis ao bullying. Dada a sua especialização nesta área, acredita que as instituições de ensino estão preparadas para receber alunos com necessidades educativas especiais? Porquê?

A preparação das instituições de ensino para receberem alunos com necessidades educativas especiais, incluindo aqueles com autismo, ainda varia bastante conforme a localização, os recursos disponíveis e a formação dos profissionais envolvidos. Um dos principais desafios está na formação dos professores, já que em muitas escolas ainda não oferecem a formação adequada para que os docentes e os funcionários saibam lidar com os alunos autistas e compreenderem as suas necessidades específicas. A ausência deste conhecimento pode originar mal-entendidos e dificultar a oferta do suporte necessário.

Além disso, a falta de recursos é uma realidade em diversas instituições, que muitas vezes não contam com profissionais essenciais como terapeutas ocupacionais, psicólogos escolares e assistentes educacionais. Sem este suporte especializado, torna- se mais difícil criar um ambiente verdadeiramente inclusivo e seguro. Embora existam políticas públicas que incentivam a inclusão dos alunos com necessidades educativas especiais, a sua aplicação ainda é muito inconsistente. Em algumas escolas, faltam práticas concretas que garantam que todos os alunos se sintam respeitados e protegidos.

O próprio ambiente escolar pode representar um desafio para os alunos autistas, especialmente quando não há uma cultura sólida de respeito e empatia. A falta de consciencialização por parte dos colegas pode aumentar os riscos de bullying e exclusão. Além disso, muitos alunos autistas enfrentam dificuldades na comunicação e na expressão das suas experiências, o que torna ainda mais complexo relatar as situações de violência ou discriminação, sobretudo na ausência de um sistema de apoio eficaz e acessível. Apesar destas dificuldades, algumas escolas têm implementado programas de sensibilização e educação sobre o autismo e outras condições, promovendo uma convivência mais inclusiva. No entanto, estas iniciativas ainda não são práticas amplamente difundidas.

Uma vez que a 2 de abril se assinala o Dia Mundial da Consciencialização do Autismo, que mitos em torno deste transtorno gostaria de desmistificar?

Um dos equívocos mais recorrentes é a ideia de que o autismo é uma doença. Na realidade, trata-se de um transtorno do desenvolvimento que afeta a forma como a pessoa se comunica, interage e percebe o mundo. Não é algo que precise ser “curado”, mas sim compreendido como parte da diversidade humana. Outro mito bastante falado é o de que todas as pessoas autistas possuem habilidades extraordinárias. Embora algumas possam, de facto, ter talentos notáveis em áreas específicas como na matemática, na música ou na memória, a maioria não apresenta estas habilidades. O autismo é um espetro, e isso significa que há uma grande variação entre os indivíduos, tanto em termos de desafios quanto de capacidades.

Também, é incorreto afirmar que pessoas autistas não têm empatia. Muitas delas sentem empatia profundamente, mas podem ter dificuldades em expressá-la ou em compreender certas normas sociais. Isso não significa que não se importam com os outros, apenas expressam os seus sentimentos de forma diferente. Outro mito perigoso é o de que o autismo será causado pelas vacinas. Diversos estudos científicos rigorosos já comprovaram que não existe qualquer ligação entre as vacinas e o autismo, sendo esta uma teoria desacreditada e prejudicial à saúde pública.

Ainda há a crença de que o autismo é mais comum em meninos do que em meninas. Embora os diagnósticos sejam de facto mais frequentes entre os meninos, isto pode estar relacionado com as diferenças na manifestação dos sintomas entre os géneros. As meninas, muitas vezes, expressam características de maneira mais subtil, o que pode levar a diagnósticos tardios ou incorretos. Outro equívoco comum é pensar que as pessoas autistas não podem levar uma vida independente. Na verdade, muitas conseguem viver de forma autónoma, especialmente quando recebem o suporte necessário. A independência depende de diversos fatores, como o nível de apoio disponível e as capacidades individuais. A ideia de que o autismo é sempre evidente desde a infância também não é totalmente precisa.

Embora muitos sinais possam ser notados ainda nos primeiros anos de vida, há casos em que o diagnóstico só ocorre na adolescência ou mesmo na idade adulta, sobretudo quando os sintomas são mais leves ou atípicos. Por fim, nem todas as pessoas autistas têm dificuldades de comunicação. Algumas enfrentam barreiras significativas nessa área, enquanto outras são altamente verbais e conseguem se comunicar com bastante fluência. Desconstruir estes mitos é essencial para que a sociedade avance em direção a uma compreensão mais inclusiva e acolhedora do autismo.

Sendo abril considerado o Mês Internacional da Prevenção dos Maus-Tratos na Infância, na sua opinião, o que deve ser feito para reduzir a violência nesta faixa etária?

Para reduzir a violência contra as crianças, é essencial promover a consciencialização sobre os direitos infantis e a importância de garantir um ambiente seguro e acolhedor para o seu desenvolvimento. Várias ações podem ser implementadas neste sentido, começando pela educação e sensibilização da sociedade. Campanhas educativas que informem os pais, os educadores e a comunidade sobre os sinais de maus-tratos e a relevância da proteção infantil são fundamentais para prevenir as situações de risco.

Outro passo importante é o apoio às famílias, especialmente aquelas em situação mais vulnerável. Isto pode ser feito por meio de programas de assistência social, aconselhamento familiar e acesso a serviços de saúde mental, que são essenciais para reduzir o stress e fortalecer os vínculos familiares. Além disso, a formação prática de profissionais, como professores, profissionais de saúde e assistentes sociais é indispensável. Estes profissionais devem estar capacitados para identificar e relatar casos de abuso, bem como lidar de forma adequada com situações que envolvam risco à integridade das crianças.

O fortalecimento das políticas públicas, também, desempenha um papel crucial na proteção infantil. É necessário implementar e reforçar as leis que garantam os direitos das crianças e assegurar que existam mecanismos eficazes de denúncia, investigação e punição dos casos de abuso. Paralelamente, a criação de redes de apoio comunitário envolvendo as escolas, organizações não governamentais e os serviços sociais podem oferecer uma proteção mais abrangente e constante, monitorando o bem-estar das crianças de forma colaborativa.

Por fim, promover atividades recreativas e educativas que incentivem ao desenvolvimento saudável das crianças contribui para a criação de um ambiente positivo e seguro. Estas atividades não apenas fortalecem as capacidades emocionais e sociais destas crianças, como, também, ajudam a prevenir os comportamentos violentos. Quando estas ações são realizadas de maneira integrada, elas podem ter um impacto significativo na redução da violência contra as crianças e na construção de um futuro mais seguro e promissor para todas elas.

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