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“A medicina dentária está em constante evolução. A atualização não é apenas uma exigência profissional, é uma responsabilidade ética”

Fundadora da Klínica Perioimplantológica Rainha D. Leonor, Susana Perdigoto acredita que o papel do médico dentista vai muito além do tratamento de dentes. Com uma carreira marcada pela investigação, formação contínua e por uma abordagem transdisciplinar, considera que trabalhar em conjunto com profissionais de diversas áreas lhes permite “oferecer um cuidado mais abrangente e eficaz”. Nesta entrevista, fala-nos de inovação clínica, distúrbios do sono, liderança, e da importância de dar visibilidade às mulheres na ciência e na saúde.

Quando olha para o momento em que escolheu a Medicina Dentária, o que a movia verdadeiramente? Que aspirações tinha para si, para os seus pacientes e para o papel do médico dentista na sociedade?

Quando olho para o momento em que escolhi a Medicina Dentária, o que verdadeiramente me movia era uma profunda paixão por ajudar as pessoas. Desde jovem, pensei sempre que a saúde oral não deve ser apenas uma questão de estética, mas uma componente vital da saúde geral. As aspirações que tinha para mim eram amplas: queria não apenas ser uma dentista competente, mas também atuar como uma educadora de saúde, promovendo a conscientização sobre a importância da higiene oral e como ela impacta outros aspetos da vida.

Eu almejava proporcionar, para os meus pacientes, um cuidado individualizado que os ajudasse a superar as suas ansiedades e a melhorar a sua qualidade de vida. Acredito que o papel do médico dentista na sociedade vai além de tratar dentes; ele deve ser um agente de mudança, contribuindo para uma visão mais holística da saúde.

A Klínica Perioimplantológica Rainha D. Leonor, fundada por si, nasceu num tempo em que pouco se falava de reabilitação oral integrada e muito menos de abordagens transdisciplinares. Já pretendia, na altura, criar mais do que um espaço clínico?

Ao fundar a Klínica Perioimplantológica Rainha D. Leonor, eu visava muito mais do que criar um simples espaço clínico. Naquela época, a conversa sobre reabilitação oral integrada e abordagens transdisciplinares era quase inexistente, e eu queria ser uma pioneira nessa área. Desejava criar um ambiente onde a colaboração entre diversas especialidades da saúde fosse incentivada e onde cada paciente pudesse receber um plano de tratamento que considerasse não só suas necessidades dentárias, mas todo o seu contexto de saúde. Esse desejo de inovação e integração é um princípio que norteia cada decisão tomada na clínica até hoje.

A sua prática clínica tem-se distinguido por uma abordagem especializada em áreas como a periodontologia, a implantologia, a dor orofacial e disfunção temporomandibular e os distúrbios do sono, com um olhar cada vez mais integrado sobre a saúde. Como é que essa visão interdisciplinar pode mudar a forma como a sociedade encara a medicina dentária?

O estudo do crescimento facial, aliado a áreas como a ortodontia, periodontologia, dor orofacial, distúrbios temporomandibulares e distúrbios do sono, tornou-se uma prioridade fundamental na prática clínica contemporânea. Há uma crescente compreensão de como esses aspetos se interligam e influenciam a saúde geral dos pacientes. É fascinante observar que muitos problemas orofaciais podem influenciar não apenas a qualidade de vida, mas também a saúde física e mental.

Um exemplo claro dessa interconexão pode ser encontrado na apneia do sono infantil. Muitas crianças que sofrem desse distúrbio apresentam sintomas que se assemelham aos do déficit de atenção e hiperatividade (DAH). Essa semelhança pode complicar o diagnóstico, levando a um tratamento inadequado e à falta de intervenções necessárias para auxiliar no crescimento harmonioso da criança. Como profissionais de saúde, temos a oportunidade de ajudar no diagnóstico correto, o que pode ser transformador. Ao identificar e tratar problemas respiratórios do sono, podemos não apenas melhorar o sono das crianças, mas também o seu desempenho académico e comportamental, assim como a sua saúde geral.

Por outro lado, reconheço que a apneia do sono não afeta apenas crianças. Durante a nossa prática clínica, frequentemente deparamo-nos com grupos menos estudados, como as mulheres, que também podem estar em risco e podem não ter sido adequadamente diagnosticadas. É vital que a comunidade de saúde se volte para essas populações e desenvolva pesquisas que explorem essas questões. O tratamento adequado da apneia e uma abordagem mais holística no cuidado da saúde bucal podem levar a melhorias significativas da saúde desses grupos populacionais.

Dessa forma, a abordagem interdisciplinar é essencial. Trabalhar em conjunto com profissionais de diversas áreas — incluindo pediatras, pneumologistas com formação em sono, otorrinolaringologistas, cardiologistas, fisioterapeutas, psicólogos e outros especialistas — permite-nos oferecer um cuidado mais abrangente e eficaz. Essa colaboração enriquece o tratamento do paciente, garantindo que consideremos diferentes ângulos para um diagnóstico preciso e um plano de tratamento coordenado.

Em suma, focar na intersecção entre essas áreas não só amplia a nossa compreensão sobre a saúde bucal, mas também eleva a capacidade de impactar positivamente a vida dos nossos pacientes, tratando não apenas dos sintomas, mas abordando as causas subjacentes e promovendo um crescimento e uma saúde harmónicos. A construção de um ambiente de trabalho colaborativo e interdisciplinar deve ser uma prioridade, porque o verdadeiro cuidado de saúde deve ser holístico e multifacetado.

Há cada vez mais estudos a relacionarem as doenças periodontais com vários problemas de saúde, desde diabetes, doenças cardiovasculares e até Alzheimer. Como especialista nesta área, pode explicar-nos, resumidamente, a relação entre essas condições e a saúde oral? E qual o impacto que uma abordagem integrada, que inclua o médico dentista, pode ter na prevenção e tratamento destas doenças?

Há um crescente corpo de estudos que relaciona as doenças periodontais com uma variedade de problemas de saúde, incluindo diabetes, doenças cardiovasculares e até Alzheimer. Gostaria de enfatizar que a saúde periodontal pode influenciar o estado inflamatório do corpo, exacerbando outras condições crónicas. Por exemplo, a inflamação nas gengivas pode afetar o controle glicémico em diabéticos e está associada a riscos aumentados de doenças cardíacas.

Na fase diagnóstica, os nossos periodontogramas são realizados através de sondas Florida, que são sondas de pressão controlada, que se destacam por serem mais precisas. Esses testes, aliados a avanços tecnológicos, permitem um diagnóstico mais detalhado e individualizado das condições periodontais dos pacientes. Além disso, os testes genéticos tornam-se ferramentas valiosas que nos ajudam a compreender a suscetibilidade dos pacientes tanto para a periodontite quanto para a peri-implantite. Essa análise genética permite-nos identificar indivíduos em risco e implementar estratégias de prevenção eficazes.

Outra parte importante da nossa abordagem inclui a realização de testes de PCR (Reação em Cadeia da Polimerase) para identificar bactérias em pacientes com casos mais graves de periodontite. Através desses testes, conseguimos detetar a presença de espécies bacterianas como o **Aggregatibacter actinomycetemcomitans** e a **Porphyromonas gingivalis**. Esta última tem sido referenciada em múltiplos estudos científicos como um agente causador potencial de condições como o Alzheimer, destacando a interconexão entre saúde oral e saúde geral do paciente.

Em clínica também usamos laser. A terapia a laser ajuda na desinfeção dos tecidos periodontais, promovendo a remoção do biofilme bacteriano e reduzindo a inflamação. O laser de baixa intensidade tem sido utilizado para reduzir a dor e a inflamação, facilitando a cicatrização dos tecidos orais. A terapia a laser pode, também, ser eficaz no tratamento da dor orofacial, dor neuropática e da DTM, reduzindo a dor e melhorando a função. Quando o médico dentista faz parte da equipa de cuidados de saúde, conseguimos oferecer uma abordagem mais preventiva e abrangente, ajudando na deteção precoce, no controlo da progressão das doenças e na promoção do bem-estar geral dos pacientes.

Concluiu a licenciatura em Medicina Dentária na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e prosseguiu um percurso académico notável, com várias pós-graduações e mestrados. Mais recentemente, iniciou um doutoramento em Biomedicina, na área de distúrbios do sono e epigenética. Como gere esta permanente exigência de atualização científica e qual é, para si, a verdadeira importância da formação contínua numa área que evolui a uma velocidade tão intensa?

Para mim, a verdadeira importância da formação contínua reside no fato de que a medicina dentária está em constante evolução, com novas pesquisas e tecnologias a surgirem a todo o momento. Essa atualização não é apenas uma exigência profissional, é uma responsabilidade ética para garantir que os meus pacientes tenham acesso aos melhores tratamentos disponíveis, apesar de ter de reconhecer que por vezes também me gera um pouco de ansiedade conciliar todos os aspetos da vida familiar, clínicos e de investigadora.

“Queria ser uma pioneira. Criar um ambiente onde a colaboração entre diversas especialidades da saúde fosse incentivada”

Fiz diversas pós-graduações, algumas relevantes como as que fiz nas áreas de periodontologia e implantologia, mas as mais marcantes foram as de técnicas genéticas e os mestrados em dor orofacial, em disfunção temporomandibular e em distúrbios de sono, atualmente estou a fazer o meu doutoramento que conjuga a genética e os distúrbios de sono.

A formação é extraordinariamente importante, fundamental para realizar diagnósticos precisos. Por exemplo, no âmbito da dor orofacial, é verdade que muitas dores dentárias podem ser referidas, ou seja, podem surgir sem uma causa dentária identificável. Isso resulta em uma série de tratamentos dentários que muitas vezes não resolvem a verdadeira causa da dor, o que pode levar à frustração tanto para os pacientes quanto para os profissionais de saúde. A dor pode emergir de condições sistêmicas, musculares ou articulares, e é fundamental fazer uma avaliação abrangente para entender as origens das queixas do paciente. No que diz respeito à disfunção temporomandibular (DTM), a fisioterapia desempenha um papel central no tratamento da dor articular e muscular. As intervenções podem incluir treino ventilatório, técnicas de terapia manual e de alongamento e exercícios para fortalecimento muscular que ajudam a aliviar a tensão e restaurar a função adequada. Além disso, o autocuidado é crucial para a gestão da DTM: A tomada de consciência sobre hábitos orais e o controlo do bruxismo, que muitas pessoas reconhecem como ranger de dentes, são essenciais para a prevenção.

Um paciente com bruxismo apresenta sempre a possibilidade de ter condições associadas, como déficit de ferro, síndrome das pernas inquietas, ansiedade e transtornos do sono que podem ser precursores de doenças como a doença de Parkinson. O Bruxismo pode também estar ligado à apneia do sono ou até ao uso de medicações, como antidepressivos ou outras substâncias que podem afetar o sono. É fundamental uma correta história clínica do paciente para identificar essas comorbidades, obter um diagnóstico mais completo e partir para uma abordagem correta. A osteoartrose da articulação temporomandibular pode ser tratada com técnicas minimamente invasivas, como infiltrações articulares de ácido hialurónico e Plasma Rico em Plaquetas (PRF), que ajudam a melhorar a lubrificação e promover a regeneração dos tecidos. Estas técnicas devem ser associadas com a fisioterapia. A artrocentese também é uma opção que pode ser considerada. A colaboração com cirurgiões maxílo-faciais é fundamental, especialmente quando se torna necessária a cirurgia articular.

Um aspeto interessante que estou a estudar neste momento diz respeito à epigenética, que é um ramo da biologia que estuda as alterações na expressão génica que não envolvem mudanças na sequência do DNA. Em outras palavras, ela investiga como fatores ambientais, comportamentais e experiências podem influenciar a atividade dos genes, sem alterar a informação genética em si, e ao papel dos microRNA na insónia e sua relação com distúrbios cardiometabólicos. Nos últimos anos, diversos estudos têm investigado a relação entre microRNAs e distúrbios do sono, como a insónia. A pesquisa sugere que os níveis de certos miRNA podem ser alterados em resposta a condições de stress, inflamação e outros fatores que também afetam a qualidade do sono.

Este é um campo de investigação novo e promissor que pode desvendar relações complexas entre os fatores genéticos, estilo de vida e condição de saúde e que pode estar na origem do desenvolvimento de intervenções terapêuticas mais eficazes e personalizadas.

Liderar uma clínica é mais do que tratar doentes — é gerir pessoas, expectativas, orçamentos, reputação. O que aprendeu, nos bastidores, que ninguém a tenha ensinado na universidade?

Essa é de facto uma questão difícil de responder, porque sou exigente, um pouco impulsiva e tenho tentado aprender ao longo dos anos com alguns dos meus erros. Liderar uma clínica é, de facto, muito mais do que apenas tratar doentes. Uma das lições mais valiosas que aprendi nos bastidores é que a gestão de uma equipa vai muito além de simplesmente delegar tarefas. Trata-se de cultivar um ambiente de trabalho positivo, incentivando a comunicação aberta e o respeito mútuo. O que não se ensina na universidade é o quanto a saúde mental e o bem-estar da equipa impactam diretamente a qualidade do atendimento ao paciente. Tenho a sorte de ter uma equipa que se transformou numa família. Pessoas em quem confio e entrego a chave de casa. Sei que tenho sorte de poder confiar e ter em quem delegar quando sou obrigada a ausentar-me da clínica. Tenho um especial agradecimento ao meu marido João Adriano Esteves, à Alexandra Gomes, à Madalena Carolino, Inês Henriques, Nicoli Moreira, Catarina Costa, Dras. Carolina Faúlha, Beatriz Sousa, Joana Carmo, Margarida Marques, Drs. Eduardo Rodrigues, Raposo, Francisco Tormenta e todos os outros colaboradores da clínica, sem eles a nossa jornada seria impossível

Quando pensa no seu percurso, há algum momento que tenha sido mais transformador — aquele que, se não tivesse acontecido, mudaria tudo?

Quando reflito sobre o meu percurso, um momento que considero transformador foi a decisão de abrir a minha própria clínica. Essa escolha foi marcada por desafios e incertezas, mas também por uma força motivadora que me impulsionou a criar um espaço onde poderia praticar medicina dentária de acordo com os meus princípios. Se esse momento não tivesse acontecido, a minha vida profissional teria tido um rumo diferente, mais académico, não teria tido a oportunidade de ter uma clínica tão personalizada como a que tenho.

Enquanto mulher, profissional de saúde e fundadora de um projeto clínico inovador, como olha para o seu percurso à luz do papel que as mulheres têm vindo a conquistar numa sociedade democrática como a nossa? Sente que a sua presença no espaço público — através de entrevistas como esta — é também uma forma de participação cívica?

Como mulher e profissional de saúde acredito que temos um papel fundamental na mudança de narrativas e na desconstrução de preconceitos. Sinto que a minha presença no espaço público, através de entrevistas como esta, é uma forma de participação cívica que pode inspirar outras mulheres a destacarem-se nas suas áreas. Acho que temos assistido a um retrocesso civilizacional em que a discriminação feminina, a violência doméstica e a violência de género estão a tomar proporções que eu pensava não ver enquanto mulher no meu tempo de vida.

O conhecimento de mulheres que se destacam na vida pública é crucial para que jovens meninas e mulheres tenham confiança em perseguir as suas aspirações profissionais, independentemente do campo escolhido, numa sociedade ainda muito machista onde cada mulher tem de trabalhar mais que um homem, em casa e fora de casa de forma a ser reconhecida.

Acredita que o facto de ser mulher e ocupar um lugar de destaque na medicina dentária pode ter um impacto real na forma como as novas gerações encaram o seu futuro profissional? É importante, no seu entender, que as mulheres na ciência e na saúde sejam também referências visíveis no espaço público?

Antes de mais, não me considero uma referência, penso em mim como uma mulher determinada, esses lugares reservo para mulheres portuguesas com outro tipo de reconhecimento internacional. Vou, no entanto, trilhando o meu percurso e neste momento leciono na Pós-Graduação em dor orofacial e disfunção temporomandibular e distúrbios de sono da Universidade Europeia de Madrid que é uma das 500 melhores do mundo e referencia nesta área de saber. É crucial que as mulheres na ciência e na saúde sejam visíveis. Normaliza a presença feminina em campos tradicionalmente dominados por homens e encoraja futuras profissionais a sonhar e alcançar os seus objetivos. Esta visibilidade ajuda, espero, a construir um mundo onde todos têm as mesmas oportunidades, promovendo uma verdadeira igualdade de género na saúde, na ciência e na sociedade na sua globalidade.

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