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“Gostar dos filhos não é suficiente. Só gostar não chega”

Abril é o mês da prevenção dos maus-tratos na infância, um tema particularmente difícil de enfrentar. Do ponto de vista jurídico, os desafios continuam a ser muitos, desde a invisibilidade de certas formas de violência até à falta de meios para uma intervenção eficaz. Claudete Teixeira, advogada especializada em Direito da Família, alerta para a urgência de uma abordagem mais preventiva e corajosa.

Ao longo da sua experiência, que tipos de casos relacionados com maus-tratos infantis tem encontrado com mais frequência? Existem padrões que se repetem?

Penso que os mais recorrentes são a violência doméstica e a inclusão da criança no conflito parental. Logo a seguir, talvez, a negligência nos cuidados básicos das crianças. Mas existem muitas situações que nem sempre chegam aos tribunais porque são menos visíveis, mas são graves. Falo de situações em que, num registo diário, e que para a criança passa a ser o normal, lhe são dirigidas considerações depreciativas relativas à sua aparência ou ao seu carácter e personalidade e/ou a criança é tratada numa base de gritos e ameaças. Este tipo de tratamento, especialmente vindo dos seus principais cuidadores, é totalmente destruidor da autoestima destas crianças. Além de que crescem achando que essa é a normal forma de tratamento dos outros, incluindo das pessoas de quem se gosta. Pois, se os próprios pais as tratam assim, então poderão tratar assim qualquer pessoa. E efetivamente tudo isto é um círculo vicioso.

Como é que a lei protege as crianças destas formas menos visíveis de violência?

A intervenção é mais difícil, a não ser que alguém denuncie esses abusos. Mas ainda assim são difíceis de provar. E francamente em algumas situações o mais importante seria agir pedagogicamente, sensibilizar e tentar mudar comportamentos, mas precisaríamos de muitas mais estruturas de apoio para fazer esse trabalho. Por agora, o que está ao nosso alcance, e que é muito importante, é apostar na educação das pessoas para a empatia, para os direitos humanos, para o respeito pelo outro. Seja em que circunstância for não devemos tolerar, nem acobertar, faltas de respeito.

“Considerações depreciativas, gritos e ameaças constantes são formas de violência que destroem a autoestima da criança”

A legislação portuguesa tem acompanhado de forma eficaz a evolução das necessidades de proteção da infância ou ainda há lacunas significativas a colmatar?

A legislação que temos para estas situação é pensada para uma intervenção “a posteriori”, para proteger a criança que é vítima de maus-tratos. O que me parece que falta é uma política preventiva. Que pode passar pela educação para a parentalidade. É certo que há situações em que não há qualquer potencial de mudança por parte da família, ou situações complicadas associadas a dependências e nessas situações não há pedagogia que funcione, mas acredito que em muitas outras os comportamentos mudariam se as pessoas percebessem o impacto negativo das suas condutas e se reforçassem as suas competências parentais. Nós podemos estar a repetir padrões educativos errados de geração em geração, se ninguém nos ensinar a fazer diferente.

A questão das dependências é particularmente grave, especialmente a dependência do álcool porque é a que mais facilmente passa despercebida e gera uma destruturação total da família, e facilmente descamba para a violência doméstica. É muito importante falar sobre o problema do alcoolismo. O consumo do álcool logo na adolescência e a ausência de consciência sobre a facilidade com que se pode criar uma dependência gera problemas graves para essas pessoas e respetivas famílias.

Que medidas legais podem ser reforçadas para garantir uma resposta mais célere e eficaz na defesa dos menores em situações de risco?

Na minha opinião o grande problema é a insuficiência de meios para aplicar a lei. Não há pessoas suficientes em lado nenhum. Nas CPCJ, na segurança social, nos tribunais, nos CAFAP, etc. Se não há pessoas suficientes para intervir atempadamente, para tramitar os processos e dar-lhes a atenção devida nada acontece no tempo desejado, nem com a eficácia desejada. Por outro lado, era importante que existisse uma abordagem preventiva impactante e eficaz.

“É muito importante apostar na educação das pessoas para a empatia, para os direitos humanos, para o respeito pelo outro”

Os tribunais portugueses estão devidamente preparados para lidar com casos de maus-tratos a crianças? O que poderia ser melhorado na abordagem judicial a estas situações?

O problema, a meu ver, é que os magistrados dos tribunais de famílias e menores estão assoberbados de processos de todas as espécies (divórcios, regulações do exercício das responsabilidades parentais, inventários e por aí fora). Embora os processos de promoção e proteção de menores sejam urgentes, é impossível, com o volume de trabalho que cada um dos magistrados tem a seu cargo, que o processo seja verdadeiramente rápido como deveria ser. Estas situações também levam a que o tribunal, nomeadamente o Ministério Público junto do Tribunal de Família, tenha mais dificuldade em fazer as averiguações necessárias para melhor avaliar a situação das crianças. Embora, do que eu vejo, os tribunais tramitem estes processos com muita preocupação, sensatez e genuína preocupação com a proteção das crianças e da salvaguarda do seu superior interesse.

O papel da sociedade civil e das instituições educativas é fundamental na deteção precoce de situações de abuso. Como avalia a eficácia dos mecanismos de denúncia e proteção existentes?

Na minha opinião, e admito que possa estar a ser injusta, pois a avaliação que faço é meramente empírica, os mecanismos de detenção funcionam em casos flagrantes de maus-tratos físicos ou em casos de famílias pobres ou totalmente disfuncionais, onde as carências são visíveis a olho nu. Já não funcionam do mesmo modo em caso de famílias com níveis socioeconómicos mais elevados ou em que o agressor é uma pessoa influente e, talvez, os maus-tratos não sejam tão visíveis. Nesses casos, o atrito que tem de se vencer para fazer uma denúncia é muito superior e nem todos o conseguem ultrapassar. Em muitas situações os estabelecimentos de ensino sabem o que se passa, mas quando são questionados não se querem comprometer. Até mesmo os psicólogos, por vezes, mesmo percebendo que existem maus-tratos psicológicos por parte de um dos pais, raramente são assertivos nos relatórios que enviam para os tribunais. Percebo que isso possa ser uma forma de continuar a dar apoio à criança evitando que esse pai retire o consentimento ao acompanhamento, mas acho que, ainda assim é preciso mais coragem.

“Se todos passarmos a ser mais corajosos, ficaremos em pé de igualdade”

Na sua opinião, existe um equilíbrio adequado entre o direito da família à privacidade e a necessidade de intervenção do Estado em casos suspeitos de maus-tratos?

O direito das pessoas à reserva da intimidade da sua vida privada terá necessariamente de ceder perante a necessidade de se investigar uma suspeita de maus-tratos a uma criança. Embora seja certamente difícil para uma família ver a sua vida escrutinada por desconhecidos, em casos em que essa suspeita é infundada (e por vezes acontecem falsas denúncias), não há outra forma de o fazer. É um sacrifício menor em face da necessidade de proteger as crianças de eventuais situações de maus-tratos.

Que conselhos daria a pais, educadores e à sociedade em geral para ajudarem na prevenção dos maus-tratos infantis?

Tenham coragem. Se todos passarmos a ser mais corajosos, ficaremos todos em pé de igualdade e assim todos temos mais força. Também me parece que este assunto tem de ser mais discutidos entre pais, estabelecimentos de ensino e psicólogos para que haja um maior sentido de alerta por parte dos educadores, para melhor esclarecimento dos pais e para que a intervenção nestas situações seja precoce e eficaz.

Por fim, que mensagem gostaria de deixar neste mês dedicado à proteção das crianças?

A reflexão que eu gostaria de deixar é a de que gostar dos filhos não é suficiente. Só gostar não chega.

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