É uma festa imensa que consegue juntar em Tomar, num só dia, mais de 700 mil pessoas. É por isso uma das maiores do mundo, e a mais significativa de todas as celebrações do Espírito Santo que ainda subsistem. A Festa dos Tabuleiros de Tomar justifica largamente a elevação a Património Imaterial Nacional e da Humanidade. Fomos perceber em que ponto está a candidatura, numa visita guiada à bela cidade dos Templários, pela Presidente da Câmara, Anabela Freitas. Redescobrimos um concelho cheio de história e tradição, mas onde se respira também futuro e inovação.
Assim que se chega a Tomar não demora muito a perceber a importância da Festa dos Tabuleiros para a cidade. Ainda em plena estrada nacional, somos recebidos na rotunda norte – Calçadas por um belo mural, da autoria de Sílvia Marieta, onde a Festa ocupa lugar de grande destaque. Ressalta o detalhe dos tabuleiros e o ar de felicidade das raparigas e rapazes ali retratados. Já no centro de Tomar não há lugar onde se entre, seja um café, um restaurante ou qualquer instituição da cidade, que não tenha um tabuleiro exposto.
Ainda antes de subirmos para o gabinete da Presidente da Câmara de Tomar, cá fora, na icónica Praça da República, Gualdim Pais parece velar por todos os tomarenses. A imponente estátua do fundador da cidade lembra-nos a antiguidade e a nobreza deste lugar. Já na escadaria de acesso ao piso superior da Câmara Municipal é sem surpresa que nos deparamos com mais um tabuleiro. Desta vez acompanhado pela frase, escrita em azulejo: “O povo é quem mais ordena”. De imediato somos remetidos para a “Grândola Vila Morena” de Zeca Afonso e para momentos de grande comunhão e júbilo popular. A frase, tantas vezes repetida nesse período revolucionário do 25 de Abril de 1974, pode também ser aplicada à Festa dos Tabuleiros. É o povo que decide se há festa ou não. “E aquilo que a população decidir é aquilo que nós iremos ajudar a materializar, porque a festa é efetivamente feita pelos tomarenses”, diz-nos Anabela Freitas, a Presidente da Autarquia.
A Festa dos Tabuleiros realiza-se a cada quatro anos, tendo a última sido em 2019, ainda antes da pandemia. Por aquilo que pudemos perceber de todas as pessoas que ouvimos por estes dias, em 2023 a tradição voltará a cumprir-se. “É o único evento em Tomar que consegue efetivamente unir todos os tomarenses. Sejamos nós de esquerda, de direita, do Sporting, Benfica, FC Porto, não interessa. Cores partidárias, cores clubísticas, diferenças que possam existir, tudo isso é esbatido com a Festa dos Tabuleiros”, garante-nos a Presidente da Câmara.
As origens desta celebração remontam a tempos ancestrais em homenagem a Ceres, deusa romana das colheitas. A religiosidade chegou mais tarde, inspirada pela lenda do “milagre das rosas” da Rainha Santa Isabel. No século XVI surge então a tradição da oferenda de pão, vinho e carne. Estes eram levados pelas mulheres até à igreja, em tabuleiros, para depois serem oferecidos aos mais pobres.
Cada um dos tabuleiros leva 30 pães enfiados em igual número em cinco ou seis canas. Estas são presas a um cesto de vime e encabeçadas por uma coroa com a Cruz de Cristo ou a Pomba do Espírito Santo. As flores de papel completam a decoração, juntamente com espigas de trigo. O Cortejo que percorre as ruas da cidade ao longo de cinco quilómetros, cruzando o rio Nabão pela Ponte Nova e pela Ponte Velha, é presidido pelo Pendão do Espírito Santo e pelas três Coroas dos Imperadores e Reis. Seguem-se os Pendões e Coroas de todas as freguesias, com as centenas de raparigas que os carregam. Mais atrás vêm então os carros de bois do “sacrifício simbólico” com o pão, a carne e o vinho.
É ainda este ano que a Presidente da Câmara tem de questionar a população se quer que haja festa ou não. Nesse mesmo dia será eleito o ou a Mordomo da Festa – há três anos foi pela primeira vez uma mulher – Maria João Lima Morais, professora no Agrupamento de Escolas Templários. A tarefa é hercúlea quando nos apercebemos de tudo o que tem de ser organizado no espaço de um ano apenas. Cabe ao Mordomo reunir a Comissão Central da Festa, cada um com os seus pelouros. Tem ainda de “articular com todos os moradores das ruas se querem enfeitar a sua rua ou não, qual vai ser o tema, de que papel é que precisam para fazer as flores”, explica-nos Anabela Freitas. Há ainda patrocínios para negociar, a organização do espetáculo cultural e só então os cortejos. Sim, porque são vários, numa festa que dura cerca de dez dias.
Quem passeia pela pacata e acolhedora Tomar não imagina que caibam aqui, num só dia, 750 mil pessoas. Foi o que aconteceu, na última edição, no dia do Cortejo Grande – a contabilidade foi assegurada por uma aplicação made in Tomar. A Smarter Fest, desenvolvida pelo Politécnico de Tomar e pela Softinsa, uma das grandes empresas a operar no concelho. Estima-se que na festa de 2019 estiveram presentes, no total, cerca de dois milhões de pessoas. Números que tornam a Festa dos Tabuleiros uma das maiores, não só do país, mas do mundo.
A candidatura a Património Imaterial da UNESCO
O que falta então para que a grande festa “do Povo, pelo Povo e para o Povo” seja elevada a Património Imaterial da Humanidade? Em primeiro lugar ser consagrada como Património Nacional, uma decisão permanentemente adiada, que a Autarca não pode “deixar de lamentar”. A candidatura foi entregue ainda em 2019 e, mais de dois anos volvidos, ainda não há resposta. “Dois anos para analisar um dossiê parece-me efetivamente demasiado e é uma expectativa grande que os tomarenses têm de candidatar a festa a Património Imaterial da UNESCO”, refere lembrando que tal não se consegue “sem antes obter a classificação de Património Nacional.”
Quando esse dia chegar, Tomar terá então dois Patrimónios da Humanidade reconhecidos pela UNESCO. Isto porque o impressionante Convento de Cristo já o é desde 1983. No próximo ano comemoram-se os 40 anos dessa designação, uma data redonda em ano de Festa dos Tabuleiros não poderia ser melhor mote para visitar Tomar.
É então com um passo de cada vez, mas firme e decidido, que a cidade dos Templários espera ver, ainda este ano, o reconhecimento da Festa dos Tabuleiros como Património Nacional. Uma garantia deixada pela Presidente da Câmara, até porque pensa que o dossiê entregue “está muito bem documentado.”
Os argumentos são claros e assentam nos “pilares dos valores que a festa comporta”, valores europeus e humanistas que se revelam na partilha do pão, do vinho e da carne. Algo que ocorre no encerramento da Festa, na segunda-feira seguinte ao Cortejo Grande, com a distribuição do bodo.
É um ano em que se respira um ar diferente em Tomar.
Os valores da festa transbordam a realização da mesma, e a generosidade e solidariedade invadem as ruas com as mesmas cores que as enfeitam. Há ainda o argumento da tradição, que está também devidamente documentado e que nos remete, por exemplo, para os “anos 50 do século passado quando se padronizou aquilo que são as vestimentas” oficiais da festa. O seu carácter educacional essencial para a candidatura à UNESCO revela-se na “passagem da tradição para as gerações vindouras”. Algo que se materializa no Cortejo dos Rapazes, dedicado aos mais novos.
Apesar de já ter assistido a “não sei quantas Festas dos Tabuleiros”, Anabela Freitas confessa que “quando é aqui o momento de erguer os cestos vêm-me sempre as lágrimas aos olhos, e espero que continue sempre assim, porque tenho muito orgulho em ser tomarense”. Este é o último mandato da Autarca, eleita em 2013, e a elevação da festa a Património Nacional será um legado seu, assim como as bases que ficam lançadas para chegar a Património da UNESCO.
Tomar multicultural e aberta ao mundo
Tomar é História e tradição, mas não se fica pelo passado. É um concelho com capacidade de atração de população, apostado na qualidade de vida dos seus habitantes e também no conforto e interesse de quem os visita.
Desde logo tem a vantagem de ficar estrategicamente a meio do país. Não só geograficamente no Centro, mas também numa posição central entre o litoral e o interior. A uma hora e meia de Lisboa e a cerca de duas do Porto, a cidade ribatejana é servida por excelentes acessibilidades.
Para além de todo o Património de que já falámos, Tomar tem ainda a “Sinagoga mais antiga do país e em perfeito estado de conservação”, lembra-nos a Presidente da Câmara. Um património judaico que, para além dos Templários, tem levado a um interesse crescente por parte de turistas norte-americanos, e mesmo de novos habitantes para o concelho. A comunidade norte-americana e britânica está em franco crescimento em Tomar ao ponto de ser necessário, em algumas freguesias, fazer os editais em duas línguas. O apoio aos residentes estrangeiros é articulado entre a Autarquia e a comunidade, numa relação de grande sucesso, que parece confirmar a tese de que os portugueses sabem acolher como ninguém. “A questão da imigração é importante até para aumentar o número de habitantes do concelho”, lembra Anabela Freitas.
Os turistas costumam ficar em Tomar dois a três dias, o que está dentro da média das estadias nas maiores cidades portuguesas, como Lisboa ou Porto. Até setembro os visitantes são sobretudo portugueses de todos os pontos do país. Com a chegada do Outono vêm os norte-americanos e os britânicos, mas também Dinamarqueses ou Finlandeses, por exemplo.
“O nosso target são as famílias, historiadores, e quem goste deste tipo de turismo”, refere a Autarca. Para isso tem organizado, com os restaurantes e com a hotelaria local, “um conjunto de pacotes que nós possamos oferecer a quem nos visita para aumentar precisamente a permanência no território”. O turismo de eventos (culturais, recreativos ou desportivos) é outra aposta que veio para ficar, tentando mitigar as diferenças entre época baixa e época alta.
Para além do Património histórico e cultural, Tomar tem ainda no seu território essa enorme massa de água que abastece cerca de três milhões de pessoas – a Barragem de Castelo do Bode no rio Zêzere. As suas margens criam um paisagem natural “que convida, ainda por cima depois da pandemia, a que as pessoas saiam dos grandes centros e venham para estes territórios”.
Um concelho industrial e tecnológico
Para além de uma história que se mescla com a de todo o país, quase desde a sua fundação, Tomar foi muito marcada ao longo do século XX pela indústria e produção hidroelétrica. Com as mudanças dos tempos em todo o país, o tecido empresarial passou a ser formado por micro, pequenas e médias empresas. É também um concelho que tem todos os graus de ensino desde o pré-escolar até ao ensino superior. Assim, a aposta da Autarquia no seu modelo de desenvolvimento faz-se através da criação de “todo um clima, todo um cluster na área das novas tecnologias.”
Há várias multinacionais a operar no concelho – “não são call centers”, assegura Anabela Freitas – especializadas em desenvolvimento de produto. Já aqui falámos da Softinsa a propósito da aplicação da Festa dos Tabuleiros. Esta faz parte do grupo IBM assim como a Kyndryl. A estas duas junta-se a portuguesa Critical Software e, mais recentemente, a Air Liquid que deverá criar 150 postos de trabalho até ao final do ano, “essencialmente licenciados”, assegura a Presidente da Câmara. O objetivo é que o Politécnico de Tomar possa alimentar estes postos de trabalho numa parceria entre empresas privadas, instituições de ensino superior e Autarquia. “Um caminho que tem dado frutos.”
A questão da habitação é o défice detetado em Tomar, à semelhança de tantas cidades do país. “Somos o concelho do Médio Tejo onde o arrendamento é mais caro e somos o segundo concelho do Médio Tejo onde a compra de casa é mais cara”, alerta Anabela Freitas. A estratégia para combater a situação está delineada e assentará no Plano de Recuperação e Resiliência, “com um mix de soluções”. Passa, entre outras, pela Construção nova em lotes da Câmara Municipal para os quais está a ser elaborado “um concurso de conceção e construção a custos controlados para depois colocar no mercado de arrendamento apoiado.”
A Autarquia espera também poder arrendar casas, algumas da Santa Casa da Misericórdia e outras do Ministério da Defesa, por exemplo. Isto porque Tomar sempre teve uma importante presença militar, como é facilmente visível por quem entra na cidade pelo Norte e se depara com o Regimento de Infantaria Nº 15.
O Plano Diretor Municipal (PDM) foi finalmente publicado em Diário da República, sendo que demorou “cerca de 20 anos a rever”. Ficam assim criadas mais áreas de localização empresarial, o que permitirá atrair ainda mais empresas.
Para além dos serviços básicos de água (com cobertura total no concelho) e saneamento, a aposta na rede de fibra ótica torna-se, nesta altura, também ela um bem essencial. Um canal de ligação ao mundo, com grandes velocidades de acesso à Internet assim como outros serviços suportados no digital, que já atinge 80% de cobertura em todo o concelho. Algo que terá contribuído, e muito, para a chegada das novas vagas de imigrantes estrangeiros a Tomar. Para além deste nómadas digitais a Presidente da Câmara quer atrair trabalhadores da Função Pública que possam vir para o concelho em teletrabalho. O caminho está traçado e não terminamos a nossa conversa sem que nos garanta que até ao final deste ano Tomar terá “uma cobertura de 100% de fibra ótica”.