Mulheres Inspiradoras

O CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA– CONTEXTUALIZAÇÃO JURÍDICA

Advogada Carina Soares

Por: Carina Soares – Advogada na Carina Soares Advogados

A violência doméstica é uma problemática complexa e multidimensional que, não obstante os recentes desenvolvimentos legislativos, encontra hoje uma presença expressiva na sociedade.

Enquanto censurável nos comportamentos que a traduzem, a violência doméstica é um fenómeno contemporâneo, tendo origem no artigo 153º do Código Penal de 1982, sendo que apenas num passado recente tem sido produzida legislação específica para a proteção dos direitos dos cidadãos que são vítimas de violência doméstica, que, até então, estavam salvaguardados pela Constituição da República Portuguesa.

A década de 1980, marcou um avanço importante no combate à violência, com a adoção pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a 18 de dezembro de 1979, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), informalmente considerada a
Magna Carta dos Direitos das Mulheres, que Portugal ratificou a 30 de julho de 1980 e entrou em vigor a 3 de setembro de 1981.

Atualmente, após a autonomização pela Lei nº 59/2007, de 4 de setembro, o crime de violência doméstica, encontra-se previsto e punido no artigo 152º do Código Penal. A incriminação visa, sobretudo, proteger a dignidade humana, tutelando a integridade física e psíquica da pessoa individual, protegendo a sua saúde, não obstante as sucessivas alterações com a Lei nº 19/13, de 21 de fevereiro, que contemplou a relação de namoro; as resultantes da assinatura e ratificação por Portugal da Convenção de Istambul (Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica) que entrou em vigor em 1 de agosto de 2014; a Lei nº 44/2018, de 9 de agosto, na qual o legislador abrangeu a prática do facto sobre menor ou na presença deste e a criminalização no contexto da violência doméstica da difusão de dados pessoais da vítima relativos à intimidade da vida privada, sem o consentimento desta; e a Lei nº 57/2021, de 16 de agosto, na qual o legislador acrescentou o “impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns”.

É de ressalvar que a violência doméstica, tipicamente associada à violência física, consiste na prática de diferentes comportamentos abusadores, raramente isolados, tornando-se por vezes repetidos, no seio familiar em coabitação, entre os quais, a violência emocional (fazer a outra pessoa sentir medo, humilhação, ameaçar, humilhar na presença de amigos, humilhar em público); a violência social (impedir a vítima de visitar pessoas amigas ou familiares, controlar as chamadas telefónicas, trancar em casa); a violência financeira (comportamentos com o objetivo de controlar o dinheiro da outra pessoa sem esta consentir, controlar o salário, forçar a justificar qualquer gasto), a perseguição (comportamentos que visam intimidar a outra pessoa através da sua perseguição para o seu local de trabalho, controlo dos seus movimentos, quer esteja ou não em casa); violência sexual (comportamentos em que força a outra pessoa a praticar atos sexuais contra a sua vontade).

Nos termos do Código Penal, é um crime de natureza pública, o que significa que, sendo uma responsabilidade coletiva, qualquer pessoa que tenha o conhecimento ou que suspeite de que alguém seja vítima de violência doméstica o pode denunciar e, o processo-crime pode ser instaurado independentemente da vontade da vítima. Ou seja, o procedimento criminal não está dependente da apresentação de uma queixa formal ou informal por parte da vítima, sendo apenas necessário uma denúncia ou que seja dado o conhecimento do crime para que o Ministério Público promova o processo. De referir que esta natureza justificou-se pelo conflito existente entre o direito à família e o direito à
dignidade da pessoa humana da mulher.

Complementando-se com a Lei nº 112/2009, de 16 de setembro (Regime Jurídico Aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Proteção e Assistência das suas Vítimas) e a Lei nº 130/2015, de 4 de setembro (Estatuto da Vítima).

Neste contexto existem vários núcleos de atendimento às vítimas de violência doméstica, sendo de destacar a estrutura da CIG – Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género que, no âmbito da Estratégia Nacional para a Igualdade de Género e a Não Discriminação (2018-2030), está a promover a campanha nacional de sensibilização para a violência doméstica “Não Há Desculpas para a Violência Doméstica”, iniciada a 14 de agosto de 2023, numa medida do Governo de combater os casos de violência doméstica.

Todavia, não obstante este esforço do Governo, que assume como prioritárias as ações de prevenção e combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica, num âmbito de continuidade às medidas de proteção às vítimas, de apoio das estruturas de atendimento, acolhimento, autonomização, apoio e reforço psicológico, é de ressalvar a fragilidade das vítimas de violência doméstica que continua a ser acentuada por estarem desacompanhadas de aconselhamento jurídico, no auxílio dos seus direitos, desde o momento inicial do procedimento.

Por outro lado, em termos processuais penais, a injunção de suspensão do processo imposta ao agressor, levanta a questão da sua adequabilidade às exigências de prevenção deste ilícito, além de não consciencializar a sociedade para a reprovação da conduta e o bem jurídico tutelado, como também não previne eficazmente futuros comportamentos semelhantes por parte do agressor.

Além de continuar a ser a vítima quem tem de abandonar a residência, acompanhada, muitas vezes, dos seus filhos menores para casas abrigo, por tempo indeterminado, a aguardar uma estabilidade socioeconómica e a reorganizar a sua vida, ficando numa situação mais fragilizada enquanto a pessoa agressora continua a permanecer na residência comum.

A proteção da vítima só pode ser devidamente assegurada se o quadro legislativo da violência doméstica for encarado como um todo, de modo a ultrapassar a relação complexa entre a violência doméstica e a justiça, pois, apesar da implementação de ações de formação e sensibilização, da criação de linhas de apoio e de assessoria às vítimas, verificam-se lacunas, que se traduzem num elevado número de vítimas de violência doméstica, em que as mulheres são as principais vítimas, apesar do fenómeno acontecer em todo o tipo de relações, independentemente do género.

E, contudo, considerando a cultura punitiva do agressor, a violência doméstica é uma questão muito mais complexa e estrutural, que não se resolve apenas com a sentença.