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“Ao não ser valorizada a formação pedagógica da docência desvaloriza-se a essência da ação dos professores”

A formação de professores em Portugal tem sido marcada por instabilidade e decisões políticas de curto prazo, comprometendo a qualidade do ensino. As mais recentes reformas refletem uma visão redutora, desvalorizando a componente pedagógica e ignorando desafios como a escassez de docentes e a necessidade de um modelo de ensino ajustado ao futuro. São estas as principais conclusões da entrevista de António Gomes Ferreira, Subdiretor da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, à IN Corporate Magazine.

Com a sua vasta experiência no estudo da educação e na investigação sobre a formação de professores, como avalia a preparação dos docentes em Portugal nos dias de hoje?

Penso que não se deve falar de formação de professores como se ela estivesse desligada da ideia de sociedade. Temos de saber que sociedade queremos ter para podermos construir um sistema educativo adequado a essa sociedade e só depois disso pensarmos na organização da instituição escolar e nos profissionais que a devem servir. A formação de professores tem sido muito sujeita a lógicas de conjuntura política e a casuísmos institucionais. Temos tido uns ministros que, rapidamente, riscam umas linhas e sobre elas fazem profissão de fé sobre o alcance salvífico de uma reforma mais ou menos precipitada.

Na voragem das mudanças ministeriais vêm as contradições e as inconsistências. As instituições de formação de professores tentam enquadrar-se nas políticas, olhando para a melhor forma de sobreviver em função das conjunturas educacionais e dos recursos que conseguem mobilizar. Em geral, procura-se atender a exigências legais ajustando os recursos disponíveis aos poderes fáticos das instituições de ensino superior, esmerando-se em estruturas pejadas de formalismo burocrático que escondem inércias políticas, culturais e pedagógicas. Estamos em tempo de só querer resolver um problema de ontem, sem pensar nas consequências da solução no futuro imediato.

“O futuro está no professor que queira compreender a aprendizagem, pelo que tem de querer aprender a cada momento”

Refere-se às medidas mais recentes, especificamente ao decreto publicado em fevereiro?

O decreto em causa é apenas um de uma sequência que vem da década anterior e que parece partir de uma visão redutora. Até houve alguma preocupação de equilíbrio no final da primeira década deste século. Na sequência da reforma do ensino superior no âmbito do designado Processo de Bolonha, a formação inicial de professores foi pensada de modo que as instituições de ensino superior equilibrassem a componente pedagógica com a científica e a teórica com a prática.

Não sendo uma reforma perfeita, abria a um modelo de formação sequencial, organizado em dois ciclos, que se podia ajustar a um tempo incerto no que diz respeito à oferta de emprego. Ficou também claro que a formação para a docência contemplava, como estruturantes, a área de educação geral, a de didática, a área cultural, social e ética e a de iniciação à prática profissional, que tendo pesos diferentes e controversos indicavam a complexidade de competências que sustenta a atividade docente no mundo atual. Talvez abrisse à possibilidade da formação pedagógica dos futuros professores do 3º Ciclo e do ensino secundário não ser tão robusta como muitos educadores desejariam, mas segurava uma preocupação que poderia ser fortalecida posteriormente.

O modelo parecia dizer que uma boa formação científica no 1º Ciclo do ensino superior complementada com a do 2º Ciclo em importância idêntica à formação educacional geral neste nível de ensino, a que se somavam as didáticas específicas, assegurava um conhecimento suficiente para uma ação pedagógica reflexiva subsequente. Apesar de existirem críticas relativas ao pouco espaço da pedagogia, a preocupação com a atuação pedagógica fundamentada estava presente.

Seria correto afirmar que se estava perante uma formação de professores promissora e que asseguraria a existência de um corpo docente adequado ao tempo moderno em que nos encontramos?

Não consigo concluir isso, nem isso é o que pretendo afirmar. Até porque havia espaço para que as instituições de ensino superior dessem acentuações diferentes às formações dos mestrados de ensino. Apenas estou a dar conta de uma preocupação de equilíbrio entre os conhecimentos científicos específicos e a formação pedagógica que não tardou a ser posta em causa. Breves anos depois, em 2014, a pretexto de se focar em especial no conhecimento das matérias da área de docência e nas didáticas respetivas, desvalorizava- se a componente pedagógica.

Mais que a diminuição do número de créditos da área de formação de educação geral que se decretava era a retórica que envolvia os discursos que sustentavam a medida que desvalorizava a área pedagógica e o que esta preparava para uma ação docente numa escola cada vez mais complexa. Ora, ao não ser especialmente valorizada a formação pedagógica da docência desvaloriza-se a essência da ação dos professores e das professoras. Somado a isto a ideia do excesso de professores que vingou durante a segunda década deste século, bem como o envelhecimento dos docentes e a sua impreparação para o enfrentar de uma escola inclusiva e com alunos e alunas culturalmente muito diferentes, a profissão docente tornou-se pouco atrativa.

“Temos de saber que sociedade queremos ter para podermos construir um sistema educativo adequado a essa sociedade”

Nos últimos anos, tem-se discutido, com frequência, a escassez de docentes no ensino básico e secundário, levantando a questão sobre a necessidade de expandir a formação de professores para atender ao crescente número de alunos e exigências. O que pensa sobre esse assunto?

É verdade que isso vem sendo dito na comunicação social e que se tem reconhecido esse problema politicamente. No entanto, a discussão sobre o assunto tem sido pouco fundamentada e cheia de equívocos. Em primeiro lugar, porque não podemos olhar um problema conjuntural como estrutural nem querermos resolvê-lo causando outros.

Se há um problema é necessário equacionar as suas causas e elas não se resolvem só com o aumento do número de formandos. Muito menos é razoável avançar precipitadamente para uma reformulação da formação de professores, tal com tem acontecido nos últimos dois anos, ao arrepio de análises e posições avisadas de pessoas da área da educação. Diz o povo que o barato sai caro. Não devemos hipotecar o futuro aumentando sem critério o número de candidatos e candidatas para ocupar lugares de docentes de forma pouco dignificante e à custa da diminuição da qualidade da formação.

O que se tem passado, nestes dois últimos anos, é exatamente isso, bem espelhado na forma do Decreto-Lei n.º 9-A/2025, de 14 de fevereiro e nos anteriores de novembro de 2023 e de março de 2024 que se revelaram muito pouco sensatos e cuidados. Estamos diante de uma precipitação legislativa. Se precisamos de mais uns tantos docentes, precisaremos ainda mais de professores e professoras que estejam capazes de formar a próxima geração.

Não se vislumbra nestes documentos nenhuma ideia de futuro projetado pelos novos conhecimentos e novas tecnologias. Não está presente a possibilidade da IA ser uma parte da solução, de podermos estar a formar docentes desadequados em número e em qualidade. Tudo indica que o futuro está em novos modelos pedagógicos que necessitam de professores mais empenhados na mediação, na motivação, na orientação. Vamos necessitar de uma docência muito mais capacitada psicopedagogicamente, de professores e professoras que saibam adequar as aprendizagens a diferentes perfis de estudantes.

O conhecimento vai estar na mão de quem quiser, mas será preciso aprender a lidar com ele, a criticá-lo, a selecioná-lo e a mobilizá-lo com critério. Agora, mais do que nunca, vamos precisar de ação refletida, de trabalho coletivo, de convocar a ética para a educação, de assumir uma pedagogia diferenciada que incentive aprendizagens consequentes. O futuro está no professor que queira compreender a aprendizagem, pelo que tem de querer aprender a cada momento, sentindo-se confiante na situação de educador e educando. As escolas com futuro quererão docentes assim.