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À Redescoberta do Património Industrial de Castanheira de Pera

Fotografia: José Luís Jorge

Da fábrica das neves aos lanifícios

Há sítios por esse mundo fora cujo magnetismo não deixa de nos surpreender. Assim que os visitamos pela primeira vez sabemos e sentimos que temos de voltar. Alguns desses sítios não ficam lá longe, no fim do mundo, “são já ali”. É o caso deste pequeno concelho de Castanheira de Pera, onde um olhar mais distraído correria o risco de passar ao lado e não mergulhar neste fantástico Pinhal Interior Norte. O dinamismo deste município convida-nos agora a conhecer os tesouros do seu Património Industrial, numa terra de grande tradição têxtil, onde encontramos também inúmeros lagares, açudes e levadas, e ainda os históricos Poços da Neve.

A Fábrica das Neves

Terá sido durante o domínio filipino que se difundiu entre a realeza o consumo de gelo, em sorvetes ou refrescos. Seria dos covões da Serra da Estrela a primeira proveniência das “neves”. Imaginemos o extenuante esforço, tanto para os homens como para os animais, empregue no transporte pelos tortuosos caminhos da montanha e as inevitáveis perdas do degelo. Mais próximo, a cinco dias de distância, os nevões nas serranias do Coentral-Lousã, ao cimo do Cabeço do Pereiro, permitiam uma melhor rentabilidade do negócio, ainda que para o armazenamento e conservação do gelo fosse necessária a construção dos “poços da neve”. Seguir-se-ia a edificação e ampliação da Real Fábrica do Gelo, na serra de Montejunto. Três diferentes métodos de fabrico de gelo provenientes de três locais distintos: na Estrela e no Coentral, através da recolha e compactação da neve, diferindo a edificação de poços dos covões naturais, e, em Montejunto, por meio de um sofisticado sistema hidráulico de congelamento natural, em que a água retirada de um grande poço era distribuída pelas quatro dezenas de tanques rasos, formando durante a noite mantos de gelo, depois retirados e compactado num grande silo ou poço.

Não se sabe ao certo quando foram construídos os poços da neve no Coentral. O alvará de D. José remonta a sua existência a pelo menos 1757, fazendo prevalecer junto do Marquês de Pombal os privilégios concedidos a Julião Pereira de Castro para o exercício do ofício de neveiro, mediante a obrigação de fornecer a neve à casa real. O gelo era transportado em carroças até ao porto da Barquinha, descendo pelo Tejo até ao Terreiro do Paço. Refrigerado o requinte dos paladares da corte, o gelo tornar-se-ia luxuosa moda nas “casas das neves” e nos novos botequins de Lisboa.

A roda hidráulica

Se branca é a neve cobrindo a cumeada, branca é a lã dos rebanhos que correm as encostas serranas… antecipando mais de um século o tempo da industrialização, o território que se estende das cumeadas dos montes gémeos do Trevim e do Santo António da Neve, sobranceiros à Selada de Pera onde brotam as águas nascentes da Ribeira de Pera, não seria lugar inóspito distante do mundo. Os sulcos trilhados na rocha por onde desciam as carroças carregadas de gelo são os caminhos que levavam os pastores ao cimo da montanha.

Solos pedregosos, predominantemente xistosos, as pequenas leiras de solo fértil, duramente amanhadas entre botaréus e socalcos, eram de curto sustento para o desenvolvimento da agricultura familiar. Na base da economia agro-silvo-pastoril, as numerosas cabeças dos rebanhos lanígeros cobrem os pastos nas serras, fornecendo a matéria-prima para a manufatura dos lanifícios, em especial a produção de burel.

O primeiro registo documental que atesta a importância da pastorícia no sustento dos povoados que habitam as margens da Ribeira de Pera é uma sentença judicial de 1467, no apelo feito a Afonso V por cinco casais de pastores deste lado da serra na contenda que os opunha aos juízes da Lousã, sobre o uso das pastagens nos terrenos baldios para lá dos termos do concelho. No cumprimento ao Regimento da Fábrica de Panos de 1573, promulgado por D. Sebastião, a Câmara de Pedrógão Grande procede no ano seguinte em ata à nomeação dos juízes e vedores encarregues de examinar os bons ofícios dos cardadores, tecedeiras, tecelões e pisoeiros na manufatura das lãs e do linho.

Atividades morosas que requeriam abundante mão-de-obra de cardadores e fiandeiras, é através da mecanização da cardagem e da fiação das lãs que se dá, pelo movimento gracioso da roda hidráulica, o arranque da industrialização dos lanifícios na Ribeira de Pera. Força motriz das novas engrenagens industriais, “às correntes d’água artificialmente applicadas como potenciais actuantes e moventes pode-se dar-lhe o nome expressivo de ulha branca, em comparação com o carvão de pedra, quando applicada para os mesmos effeitos”– assim era a espuma da água caindo nos açudes e correndo na levada, descrito na edição de agosto de 1902 do jornal «O Figueiroense».

São avultados os investimentos na construção dos edifícios, nalguns casos de difícil acesso no encaixe escarpado da ribeira, e na compra da maquinaria importada da França ou Bélgica, feita transportar, desde o ramal ferroviário da Lousã, por rudimentares caminhos na demorada e perigosa travessia da serra, que requeriam o esforço empreendedor e os cabedais de homens visionários. Em 1858, José Antão inicia a construção da primeira fábrica de lanifícios na Abelheira. Segue-se, por Domingos Correia de Carvalho e sócios, a fundação da fábrica da Retorta em 1864. Pertença de António Alves Bebiano, o empório industrial do Visconde de Castanheira de Pera começou a ser construído em 1866, concluindo-se a instalação da moderna tecelagem mecânica em 1879. À época do Inquérito Industrial de 1881, a terceira maior fábrica de lanifícios do país, com capitais fixos de 180.000$00 réis, servia-se dos motores de “duas rodas hydraulicas, com a força de 40 cavalos, duas turbinas com força de 32 cavalos e 4 vapores com a força de 150 cavalos, dois d’estes vapores com a força de 50 cavalos substituem aquelles motores na estação do verão e um vapor da força de 100 cavalos trabalha diariamente”. Por meio da instalação de uma turbina elétrica no açude do Pisão Novo, a luz elétrica ilumina as ruas da vila desde finais de 1912.

Laneiros, latiqueiros e fabricantes de barretes

«Castanheira de Pera é a primeira terra industrial do Districto de Leiria, é a cabeça de freguezia do Concelho de Pedrogam Grande, e está situada na Margem Direita da Ribeira de Pera; esta Ribeira é o principal motor de quatorze fabricas que se acham aqui installadas, havendo ainda 7 machinas a vapor. Todas estas fabricas são de lanificios, e n’ellas se fabricam as fazendas a que a industria Portugueza tem attingido. Empregam-se nas referidas fabricas 1300 operários e tem um movimento de salarios semanaes de 2.000.000 de reis, e a sua exportação é de 500.000.000.»

António Alves Bebiano,

Presidente da Câmara Municipal de Pedrógão Grande,

10 de julho de 1890

Pela força do progresso industrial, o pequeno vilarejo perdido nas serranias ascende à categoria de sede de concelho em 1914. Das cercas de quatro mil almas nas contagens de 1864, a população das freguesias de Castanheira de Pera e Coentral ultrapassa os 6500 habitantes por altura da emancipação municipal.

Da ancestralidade dos fabricantes e negociantes de tecidos nasceu, em data incerta, o laínte da Casconha. No fomento dos laços de solidariedade e de identificação socioprofissional, os latiqueiros (falantes de laínte) faziam uso da gíria deste socioleto ou linguagem paralela, transmitida secretamente entre iniciados, como forma de se protegerem no alerta codificado diante dos perigos nas longas viagens, carregando nas carroças as fazendas e outros artigos do seu sustento e escondidos no alforge os proventos dos negócios. Não percebido no regateio das feiras e mercados, tanto por compradores como por outros vendedores concorrentes, o domínio da linguagem codificada dava aos latiqueiros vantagens na concertação dos preços e na valoração dos seus produtos.

Até meados do século passado, os teares mecânicos das modernas fábricas coexistiram com as tramas e urdiduras das centenas de oficinas de tecelagem manual, que se dedicavam ao fabrico de buréis, saragoças, surrobecos, mantas, xailes, fantasias e artigos finos. Paralelamente à grande indústria de lanifícios desenvolveu-se a fabricação de malhas: peúgas, meias, luvas e gorros. Memória-viva da introdução da maquinofatura em finais de oitocentos, fazendo uso do centenário tear circular, ainda hoje continuam a ser confecionados em Castanheira de Pera os tradicionais barretes de lã – do pescador, do campino e dos trajes típicos do folclore português – pelo único fabricante em atividade, José Augusto Tavares (JOTAV).

Nas engrenagens do turismo industrial

Fundada em 1927, da oficina de tecelagem ao moderno e sofisticado complexo fabril voltado à internacionalização no competitivo mercado global, a Albano Morgado, S.A. muito tem prestigiado a indústria-viva dos lanifícios de Castanheira de Pera. A abertura das portas da fábrica aos roteiros do turismo industrial, mostrando aos visitantes o ciclo completo da transformação das lãs, desde a entrada da matéria-prima em rama até à variedade de tecidos cardados, é um novo e estimulante desafio.

Das centenárias fábricas novecentistas jazem as ruínas ao longo da ribeira, entre o esplendor das quedas de água e a exuberância da galeria ripícola, que entrecruzam as novas potencialidades do turismo industrial com a promoção do turismo de natureza e a dinamização de atividades de recreio e lazer. Lançado em 2023, Doze Meses, Doze Caminhadas é a grande aposta da Prazilândia E.M. na divulgação do pedestrianismo. O sucesso da Rota do Açudes justifica o mais recente investimento da autarquia na construção do novo percurso pedestre, com saída da Praia das Rocas e passagem nos imponentes açudes, ruínas fabris e moinhos dos Esconhais, Retorta, Pisão Novo, Abelheira, Souto Escuro, Rapos, Moinho da Luz, Moita e Linhares, num percurso linear de aproximadamente seis quilómetros.

No norte do concelho, a nova rota circular Murmúrios da Floresta ligará, no primeiro troço do trajeto, o Coentral Grande ao futuro Museu do Barrete, nas Sarnadas. Inativa à cerca de uma década, a MAB – Manuel Alves Barata completa a narrativa da fabricação de meias e luvas, conservando-se até ao momento o cenário industrial que despertou o recente interesse de produtoras de cinema.

Os palacetes aburguesados construídos entre finais de oitocentos e as primeiras décadas de novecentos recordam os tempos áureos do progresso da indústria e do comércio no movimento da vila. No centro de Castanheira de Pera, próximo dos Paços do Concelho, da montagem dos caracteres tipográficos ao planográfico da impressão offset, as Oficinas Gráficas da Ribeira de Pera são outra film location de época numa viagem temporal a meados do século passado.

Longe dos olivais intensivos do Alentejo, combinando a predominância da azeitona galega com os métodos tradicionais de produção do ouro líquido (galgas, capachos e prensas), que conferem ao azeite a tipicidade da textura e do sabor desta região, Castanheira de Pera associou-se ao projeto Olive4All na promoção do olivoturismo. Na trilogia – oliveira, azeitona e azeite – ao redor do Dia Mundial da Oliveira, celebrado a 26 de novembro, o Lagar do Bolo abriu portas a visitas guiadas e o Núcleo Museológico do Lagar do Corga deu espaço a provas de azeite e à gastronomia, num programa a repetir em edições futuras.

O presente são narrativas de memórias nas teias do passado, em que se tecem as identidades investidas de futuro…

Visite Castanheira de Pera!