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“Gosto muito do direito em geral”

Depois do artigo na nossa edição de fevereiro, em que Claudete Teixeira argumentava porque é que “sem justiça não há liberdade”, entrevistámos agora a advogada experiente na área do direito da família para aprofundar alguns temas. Falámos da evolução legislativa ao longo destes 50 anos de Democracia e, tendo o Dia da Mulher como mote, abordámos ainda questões sociais como a (des)igualdade de género na advocacia. A esse propósito lembra que “as advogadas portuguesas não têm direitos sociais básicos como a proteção na maternidade”.

A Claudete Teixeira tem uma vasta experiência em Direito da Família. O que a levou, na sua trajetória profissional, a interessar-se neste ramo específico do Direito?

Juridicamente é um ramo do direito que gosto de estudar e pelo qual sempre me interessei. Por outro lado, fui-me destacando nesta área e, também por essa razão, decidi aprofundar os meus conhecimentos e frequentei várias pós-graduações relacionadas com o direito da família e das sucessões. É uma área muito desafiante porque além da parte jurídica lida-se com as emoções das pessoas, como em nenhum outro ramo acontece. Mas eu gosto desse desafio. Não obstante, gosto dos outros ramos do direito civil, como o direito dos contratos, o direito laboral e outros. Gosto muito do direito em geral. Neste momento estou a frequentar uma pós-graduação em direito do trabalho.

Quais são os principais desafios e responsabilidades enfrentados por um(a) advogado(a) ao lidar com questões tão complexas e sensíveis como são as familiares?

Muitas vezes, quando as pessoas nos procuram estão muito fragilizadas emocionalmente e, nesses casos, pode-lhes ser difícil agir de uma forma racional e sensata. Temos de ser empáticos e compreensivos para com as dificuldades das pessoas, mas também guiá-las a tomar as melhores decisões. O acompanhamento do nosso cliente deve ser constante, especialmente nas fases mais críticas, porque as dúvidas e os problemas são frequentes. E quando as pessoas não sabem como agir, facilmente poderão agir mal. Em situações de divórcios, regulação do exercício das responsabilidades parentais, ou partilhas, por exemplo, as pessoas são confrontadas com uma realidade que era desconhecida até então e que gera dúvidas acerca de situações concretas do dia-a-dia que, até essa altura, não se colocavam. A situação torna-se particularmente desafiante quando há crianças envolvidas em conflitos parentais. O advogado tem de ser o guia dos pais para melhor resolver o problema do adulto, sem danos para a criança. A criança deve ver o divórcio como uma alteração na sua vida; não como uma desarmonia, desorganização e conflito, mesmo que, entre os pais, exista litígio.

Pode partilhar connosco a sua perspetiva sobre a mediação familiar como ferramenta para encontrar soluções consensuais e resolver conflitos familiares?

A mediação familiar é uma ferramenta importante e que surge como uma alternativa extrajudicial de resolução dos conflitos. O objetivo da mediação é que os próprios envolvidos, debatendo as suas divergências, com a ajuda de um mediador, consigam construir o seu próprio acordo e encontrar uma solução negociada. Há situações em que não é possível o recurso à mediação familiar como, por exemplo, em situações em que que exista violência doméstica. Mas, quando é viável, e é bem feita, a mediação familiar pode ter resultados excelentes. O facto de serem os próprios a construir o acordo é um fator de motivação acrescida e de maior adesão ao seu cumprimento do acordo.

“O advogado tem de ser o guia dos pais para melhor resolver o problema do adulto, sem danos para a criança.”

Em Portugal as pessoas podem ter acesso a um mediador inscrito no sistema de mediação pública ou contratar um mediador privado. Nos processos judiciais de regulação do exercício das responsabilidades parentais, por exemplo, na ausência de acordo na primeira conferência de pais, as partes têm a oportunidade de ser encaminhadas para a mediação familiar para se tentar o acordo, que depois será homologado pelo tribunal. Mas esta é uma solução que tem tido pouca aplicação prática em Portugal – não sei se é só uma questão cultural ou se o recurso à medição pública não foi o esperado.

Tendo os 50 anos do 25 de Abril como mote, pergunto-lhe, em relação à legislação atual e às alterações que foi sofrendo ao longo dos anos, quais mudanças ou desenvolvimentos que considera mais relevantes no Direito da Família?

As mudanças foram imensas. Antes do 25 de abril não era possível o divórcio, se os cônjuges fossem casados catolicamente, e nem era possível o divórcio por mútuo consentimento. O homem era consagrado como o “chefe da família” que administrava todo o património, quer se tratasse de bens comuns do casal, ou de bens próprios da mulher. Atualmente nada disto acontece. Hoje temos o reconhecimento da união de facto como figura jurídica geradora de direitos, a permissão da celebração do casamento entre pessoas do mesmo sexo, a permissão da adoção por pessoas individuais ou por casais do mesmo sexo. Não só passaram a ser aceites outros modelos de família como a forma como o homem e a mulher são vistos dentro da família, passou a ser diferente. Veja-se a temática associada à violência doméstica. Eu ainda tenho memória de a sociedade achar normal o marido bater na mulher e nos filhos. Situações com as quais a sociedade atual já não compactua.

Mais recentemente, sublinho as alterações legislativas levadas a cabo em 2008 quando se eliminou o fator culpa nos processos divórcio. No chamado divórcio litigioso, o juiz deveria declarar a culpa dos cônjuges no divórcio, o que tinha consequências patrimoniais negativas, em sede de partilha, para o cônjuge declarado culpado. Isto levava a que se gerassem processos de divórcio muito litigiosos devido unicamente a essas consequências patrimoniais. Situação que desapareceu. Inclusive deixou de se usar a expressão “divórcio litigioso” para se passar a dizer: ‘divórcio sem consentimento de um dos cônjuges’. Por outro lado, nestes casos de falta de consentimento de um dos cônjuges, abriu-se o leque de possibilidades para se requerer o divórcio a quaisquer fatos que mostrem a rutura definitiva do casamento, ou seja, também por esta via, tornou-se mais facilitado o acesso ao divórcio.

Por fim, sublinho as alterações legislativas de 2015, que refletiram uma mudança de paradigma muito importante, nos processos que envolvem crianças.

Nesta altura existiram mudanças de linguagem que refletiram ideias muito importantes. A expressão ‘poder paternal’ foi substituída por ‘responsabilidades parentais’. Os pais não detêm um poder sobre os filhos, mas sim uma responsabilidade. A expressão “menor” foi substituída por “criança”, por se considerar que a expressão menor era redutora. E colocou-se o foco no superior interesse das crianças como titular dos direitos que se visam proteger nos processos que as envolvem. Passou a refletir-se, cada vez mais, a importância da criança manter um convívio próximo com ambos os progenitores, em situações de separação dos pais. Processualmente, reforçaram-se os mecanismos de busca de soluções negociadas, tentando-se reduzir os níveis de conflito. É importante conhecer a história para se valorizar as conquistas de Abril e perceber que o que temos hoje como dados adquiridos nem sempre o foram.

Como é que estas mudanças têm afetado a prática jurídica e as dinâmicas familiares?

Por um lado, hoje existe um elevado número de divórcios, nada comparável com o reduzido número que existia há 50 anos. Mas com a eliminação da figura do cônjuge culpado, diminuíram significativamente os julgamentos muito conflituosos em processos de divórcio.

Por outro lado, com a maior liberdade que existe hoje em iniciar e terminar relações e a maior paridade entre o papel do homem e da mulher no trabalho e na família, gerou-se um problema, que era pouco significativo e que agora tem uma grande expressão, que é o problema do conflito parental na regulação do exercício das responsabilidades parentais.

Este é um problema complexo e por essa razão, nas várias fases do processo de regulação do exercício as responsabilidades parentais, as partes são encaminhadas para soluções que busquem o acordo nas matérias em discussão. Embora, na minha opinião, ainda existe um longo caminho a fazer nesse sentido. Em qualquer situação de separação, os pais deveriam ser informados e sensibilizados para os danos provocados nas crianças pelo conflito parental. E é preciso uma maior especialização e formação para todos os profissionais que trabalham nesta área.

“É importante conhecer a história para se valorizar as conquistas de Abril e perceber que o que temos
hoje como dados adquiridos nem sempre o foram.”

Por outro lado, se há uns anos atrás era comum o pai ficar relegado para o papel de “pai de fim semana”, agora há um elevado número de residências alternadas, não apenas quando há acordo dos pais mas também por determinação do tribunal.

Sem justiça célere não há, na prática, justiça. É um dos principais problemas detetados na nossa realidade, com a falta de meios a ser a principal razão apontada. Também por isso, o papel do advogado acaba por ser mais desafiante? Sobretudo quando falamos de temas particularmente sensíveis, muitas das vezes envolvendo crianças.

A morosidade da justiça é um problema muito grave e não vejo quaisquer perspetivas de melhoria. Tivemos eleições há pouco tempo e francamente não percebo porque é que a questão da justiça, nem mesmo nos programas eleitorais, é abordada de uma forma séria e profunda. Sendo importante frisar que a principal causa da morosidade da justiça é a falta de meios. Meios humanos, técnicos e até de salas.

Também não percebo porque é que quando se aborda o tema da morosidade da justiça o problema é resumido aos processoscrime. A justiça não se resume aos processos-crime. No caso dos tribunais de família e menores a situação é particularmente grave. Quando estão em causa os direitos das crianças, e os atrasos nos processos se prolongam por anos, é fácil de perceber a gravidade da situação. Em cada situação de conflito parental há uma criança em risco. É bom lembrar que as crianças de hoje serão os adultos do futuro. Quando os tribunais de família não conseguem intervir atempadamente, os danos psicológicos provocados nas crianças podem ser graves e irreversíveis.

Por outro lado, é importante perceber que os tribunais não são a solução para tudo e, por essa razão, é preciso também repensar o sistema e perceber como efetivar a ajuda aos pais e às crianças fora dos tribunais. A mediação familiar deve fazer parte da solução, mas neste momento ainda tem pouca expressão prática. O apoio mais efetivo e presente que as pessoas têm é o do advogado. Por estas razões é ainda mais importante que o advogado que trabalha nesta área tenha um conhecimento profundo da mesma. O aconselhamento que é dado às pessoas poderá ditar o sucesso ou insucesso do relacionamento parental futuro e ter consequências diretas na estabilidade e bem-estar de todos os envolvidos, incluindo as crianças. Para não falar nas consequências patrimoniais. A abordagem que se deve ter neste tipo de processos tem de ser completamente diferenciada de todos os outros.

O Dia Internacional da Mulher é sempre uma oportunidade para discutirmos questões de igualdade de género. No caso particular dos advogados, há uma clara desigualdade entre homens e mulheres que se manifesta na ausência de direitos sociais básicos, como a proteção da maternidade ou assistência à família. Como é que olha para esta situação, sobretudo quando falamos de uma profissão que lida com a aplicabilidade da Lei e a defesa da Justiça?

Já dizia o provérbio: “em casa de ferreiro espeto de pau”. É o caso. A nossa profissão é defender os direitos das pessoas, mas em pleno século XXI as advogadas portuguesas não têm direitos sociais básicos como a proteção na maternidade, assistência à família, proteção na doença, ou outros. Situação que não acontece com os nossos colegas europeus.

Não têm as advogadas, nem os advogados, embora no caso das mulheres a situação seja mais penalizadora na situação da maternidade. O que por si só, gera desigualdades.

Os advogados e solicitadores portugueses são obrigados a descontar para uma caixa de previdência privada, a CPAS, que não nos garante os mesmos direitos sociais disponíveis para os trabalhadores independentes. Contudo, mesmo em países como Espanha e Alemanha, onde, também existem regimes de segurança social privados, são assegurados direitos essenciais como apoio na doença e parentalidade, o que não acontece em Portugal. Portugal tem vindo a refletir, na sua legislação, uma preocupação em garantir direitos sociais aos trabalhadores por conta de outrem. Ainda recentemente, em maio do ano passado, foi alterada a legislação laboral, com a entrada em vigor da “agenda do trabalho digno”, com a implementação de mais medidas no sentido de promover uma melhor conciliação entre a vida profissional, pessoal e familiar. Contudo há um segmento de portugueses e portuguesas relativamente aos quais o Estado mostra total indiferença para o facto de não terem direitos sociais nenhuns no apoio na doença e parentalidade, o que é incompreensível. É caso para dizer que, no caso das crianças que são filhos de advogadas, o seu “superior interesse” não é assim tão superior. Se para o Estado Português é normal que as advogadas portuguesas tenham de levar o computador portátil para a maternidade, tenham de cumprir prazos enquanto amamentam de duas em duas horas, de dia e de noite, tenham de levar bebés recém nascidos para o escritório, tenham de fazer julgamentos menos de um mês depois de dar à luz, os seus bebés fiquem “à porta” de tribunais à espera para ser amamentados, entre o mais, é porque o superior interesse destas crianças realmente não é assim muito superior.

Imagino que esta discriminação dificulte muito o trabalho de uma advogada em determinadas fases da vida. Como é que se pode colmatar esta injustiça no exercício da profissão?

Cada caso é um caso e de certeza que cada advogada terá uma história para contar. Mas, penso que única forma de se conseguir gerir tudo isto, além de ser imprescindível ter uma força e determinação muito grande, é ter ajuda de colegas no que diz respeito ao trabalho do escritório e ter ajuda de familiares com os filhos. Essencialmente, dependemos da disponibilidade e boa vontade de terceiros.

Ao consultar o seu site, no sempre útil espaço reservado às perguntas frequentes, há uma resposta que tem um fator comum a muitas outras conversas tidas com advogados. Falo concretamente da importância de consultar um advogado sempre que se tem uma dúvida sobre qualquer assunto legal. Podemos dizer que é algo que pode evitar muitos problemas futuros?

A procura do aconselhamento do advogado deve ser, desde logo, preventiva. É comum as pessoas assinarem contratos feitos sabe-se lá por quem e sem consultarem previamente um advogado. Isto é um erro e muitas vezes gera problemas difíceis de resolver. Se a consulta do advogado fosse preventiva, e não quando os problemas já aconteceram, muitos problemas não chegariam, sequer, a acontecer.

“É comum as pessoas assinarem contratos feitos sabe-se lá por quem e sem consultarem previamente um advogado. Isto é um erro e muitas vezes gera problemas difíceis de resolver.”

Aproveito a oportunidade para dizer que a legislação recente que alterou a Lei dos atos próprios dos advogados permitindo que, por exemplo, licenciados em direito (não advogados) prestem consulta jurídica ou que a elaboração de contratos possa ser entregue a pessoas com mero conhecimento teórico sobre os mesmos, desconhecedores das vertentes e consequências práticas que as obrigações neles previstas podem representar, entre outras, é uma aberração jurídica e é de quem não percebe nada do que é a advocacia. O preço destas alterações vai ser pago pelo cidadão incauto que cair nesta armadilha.

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