Justiça

“A Justiça portuguesa tem potencial para evoluir significativamente no futuro”

Um inquérito realizado pelo Instituto de Políticas Públicas e Sociais (IPPS) do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa revelou que a Justiça é a instituição pública mais mal avaliada pelos portugueses. César Sousa, enquanto advogado, jurista, formador e coordenador jurídico, que conhece o modo de funcionamento do sistema, dá o seu parecer acerca dos resultados deste estudo.

A Justiça foi a instituição pública mais mal avaliada pelos portugueses, com 74% da população a dizer que o sistema funciona “mal” ou “muito mal”. Enquanto advogado, o que considera ter levado a este resultado?

No Inquérito Sobre a Justiça (O Estado da Nação 2024) do ISCTE, não são apontados os fatores que justifiquem essa avaliação. Contudo, como Advogado, reconheço que possam existir várias razões pelas quais o cidadão comum pode avaliar negativamente o Estado da Justiça. Desde logo a “Morosidade e Lentidão dos Processos” (sentimento de que os processos judiciais demoram demasiado tempo a ser resolvidos, motivo para a frustração e desconfiança no sistema), “Custos Elevados” (proibitivos para muitas pessoas, conduzindo a uma interpretação de que a Justiça não é acessível a todos); “Complexidade do Sistema” (a burocracia pode ser de difícil compreensão para o cidadão comum, o que pode gerar uma sensação de alienação e desconfiança); “Perceção de Corrompimento” (situações de má conduta dentro do sistema judicial podem minar a confiança dos cidadãos na Justiça); “Desigualdade no Acesso” (a perceção de que nem todos têm igual acesso à Justiça, especialmente os mais desfavorecidos); a “Imagem Pública dos Advogados” (a sua conduta ética pode influenciar o entendimento dos cidadãos sobre a Justiça em que a falta de confiança nos advogados pode refletir-se numa visão negativa do sistema judicial como um todo) e a “Contribuição dos meios de comunicação” (82% dos inquiridos referiu as notícias da comunicação social como principal meio de informação, o que significa que a perceção sobre o Estado da Justiça é igualmente influenciado pela transparência e o (des)investimento dos meios de comunicação no tema, a ser alcançado através de um equilíbrio entre a necessidade de informar o público com a responsabilidade de não distorcer, sensacionalizar ou romancear alguns casos judiciais).

Entre os inquiridos que avaliam a Justiça negativamente, a maior responsabilidade é atribuída a juízes, procuradores e governos, numa escala que coloca os “cidadãos em geral” como os menos culpados dos problemas. Na sua opinião, o que deveria ser feito para que as pessoas mudassem a forma como olham para o sistema?

Melhorar a imagem da Justiça é um desafio complexo, muitas das vezes prejudicado por interesses corporativos, mas algumas estratégias podem ser implementadas para aumentar a confiança pública no sistema judicial: “Acelerar os Processos Judiciais” (reduzir a duração dos processos pela atualização dos ritos processuais; redução do número de peças processuais, com apresentação de toda a prova pelas partes no início da sua intervenção nos processos; modernização de procedimentos e a utilização de tecnologias digitais pode ajudar a diminuir a frustração dos cidadãos); “Amplificar a Transparência” (sem diminuir o segredo de Justiça, tornar os processos judiciais mais transparentes e acessíveis ao público, disponibilizando informações claras sobre o andamento dos casos e as decisões judiciais); “Redução dos Custos” (colocar em prática medidas para tornar a Justiça mais acessível financeiramente, como a redução de taxas judiciais); “Educar e Sensibilizar”(promover a educação jurídica entre os cidadãos para que compreendam melhor os seus direitos e o funcionamento do sistema judicial, reduzindo a sensação de alienação e desconfiança); “Melhorar a Formação dos Profissionais” (investir na formação contínua de juízes, advogados, funcionários judiciais e outros profissionais do setor para garantir que estão atualizados com as melhores práticas e padrões éticos); “Comunicar Eficazmente”: (investir no melhoramento da comunicação entre o sistema judicial e o público, através de canais modernos e acessíveis, com linguagem acessível, promovendo uma imagem mais positiva) e “Fomentar a Ética Profissional” (promover uma cultura de ética e responsabilidade entre os profissionais do direito, não esquecendo que a ética não é apenas uma questão individual mas uma responsabilidade coletiva).

“Aumentar a participação dos cidadãos no sistema judicial pode também ajudar a fortalecer a democracia e a confiança no sistema”

Uma vez que a sua profissão lhe permite estar por dentro do funcionamento da ‘máquina’, faz a mesma leitura da Justiça que este estudo?

Os resultados não nos permitem concluir se do universo dos inquiridos estão ou não incluídos indivíduos com alguma ligação ao sistema de Justiça, nomeadamente os profissionais do setor, pelo que, como profissional, não faço a mesma leitura «pessimista», até porque sou acérrimo defensor da premissa de que “os problemas só me ajudam a redirecionar os esforços para a melhor solução possível”.

Agora, é evidente que os sistemas judiciários de todo o mundo, como o nosso, enfrentam diversos desafios. Veja-se o excesso de processos e o grande volume de casos que sobrecarregam os tribunais, levando a atrasos na resolução de disputas; a lentidão e ineficiência, especialmente nos tribunais administrativos e fiscais, nos quais, entre outras matérias, habitualmente as disputas são com o próprio Estado, prejudicando assim a confiança pública no sistema; os recursos insuficientes, traduzidos também em carência de juízes e funcionários judiciais, bem como a necessidade de formação e especialização para lidar com casos complexos; a digitalização que, apesar de ser uma solução potencial para muitos problemas, comporta consigo desafios próprios, como a necessidade de garantir a segurança dos dados e a proteção dos direitos fundamentais e a desjudicialização, ou seja, um movimento crescente para resolver litígios fora dos tribunais, através de serviços públicos e entidades privadas, procurando soluções mais rápidas e menos onerosas, mas carregando consigo também inúmeros desafios, como sejam a qualidade e consistência das suas decisões, o acesso a esses mecanismos alternativos por falta de conhecimento e a falta de supervisão judicial.

Esses desafios destacam a necessidade de reformas contínuas e investimentos para melhorar a eficiência, transparência e equidade do sistema judicial em Portugal.

“Melhorar a imagem da Justiça é um desafio complexo, muitas das vezes prejudicado por interesses corporativos”

No que concerne ao futuro, um quarto dos inquiridos mostra- se pessimista e antecipa uma maior degradação do sistema. Como vê a Justiça portuguesa no futuro?

A Justiça portuguesa tem potencial para evoluir significativamente no futuro, especialmente se implementadas algumas das melhorias sugeridas anteriormente. A adoção de tecnologias avançadas pode tornar os processos judiciais mais rápidos, eficientes e transparentes e a digitalização completa dos processos pode reduzir a burocracia e os atrasos, para além de ajudar à implementação de práticas sustentáveis, promovendo processos mais ecológicos e diminuição de custos, contribuindo positivamente para uma melhor acessibilidade ao sistema de justiça, com redução, desde logo, das taxas e encargos.

A formação contínua e a atualização dos conhecimentos dos profissionais do direito serão essenciais para garantir que estão preparados para lidar com novos desafios e tecnologias.
Uma maior transparência nos processos pode aumentar significativamente confiança pública no sistema judicial.

A implementação de práticas de justiça restaurativa pode ajudar a resolver conflitos de maneira mais eficaz, focando na reparação dos danos e na reconciliação entre as partes envolvidas. Aumentar a participação dos cidadãos no sistema judicial, através de iniciativas como júris populares e consultas públicas, pode também ajudar a fortalecer a democracia e a confiança no sistema. Com particular importância para o envolvimento dos jovens na reforma da Justiça como fator decisivo para garantir que o sistema evolua por forma a refletir as necessidades e valores das futuras gerações.

Tal poderá ser alcançado pela introdução de programas de educação jurídica nas escolas e universidades para aumentar a compreensão dos jovens sobre o funcionamento do sistema judicial e os seus direitos; criação de espaços onde os jovens possam discutir, seja presencialmente ou online, questões relacionadas com a Justiça, como debates, fóruns e workshops; oferecer oportunidades de estágio e voluntariado em instituições judiciais e organizações de direitos humanos para que os jovens possam ganhar experiência prática e contribuir para a reforma; inclui-los em consultas públicas sobre reformas judiciais, permitindo que eles expressem as suas opiniões e ideias; utilização de plataformas digitais e redes sociais para envolver os jovens em discussões sobre justiça e reformas, aproveitando as ferramentas que eles já usam diariamente; criação de programas de mentoria onde profissionais do direito possam orientar jovens interessados em carreiras jurídicas, ajudando- os a entender melhor o sistema e a identificar áreas de melhoria; incentivar os jovens a participar em projetos de inovação que visem melhorar o sistema judicial, como “hackathons” e competições de ideias; promover campanhas de sensibilização sobre a importância da Justiça e as áreas que necessitam de reforma, utilizando linguagem e meios que ressoem com os jovens.

Envolver os jovens na reforma da Justiça não só traz novas perspetivas e ideias, mas também ajudará a construir um sistema mais justo e inclusivo para todos.