Justiça

“A liberdade no exercício da profissão fascinou-me e não me arrependi”

Numa carreira moldada por desafios e escolhas, Filipa Fraga Gonçalves decidiu seguir o caminho da advocacia que lhe permitiu trabalhar com valores com os quais se identifica, como a liberdade e a independência. Hoje, com vasta experiência e um percurso notável em áreas como o arrendamento e a justiça social, a advogada partilha as suas motivações e preocupações quanto ao futuro da justiça em Portugal.

Para começar e ficar a conhecê-la um pouco melhor, permita-se só perguntar-lhe o que a levou a optar pela Advocacia em vez da Magistratura, como creio que seria a vontade do seu pai?

Quando acabei o curso de Direito tinha 22 anos. O ingresso no CEJ tinha como requisito a idade mínima de 25 anos. Assim, decidi aceitar o convite de um professor da faculdade e fui fazer o estágio. Nesta altura comecei a ter noção da realidade dos tribunais e do facto de o advogado ter de exercer a sua missão de forma independente. A liberdade no exercício da profissão fascinou-me e quis continuar desta forma. Não me arrependi.

Quais acredita serem os principais desafios e oportunidades que a Advocacia enfrentará nos próximos anos, considerando o estado atual da Justiça em Portugal?

Será certamente um desafio, não termos uma classe unida. Enquanto não o formos, continuamos a ser descredibilizados perante os cidadãos. Por outro lado, as mudanças recentes ao nosso estatuto profissional vieram impedir a inscrição de muitos jovens nos estágios, decrescendo o número de advogados no futuro a exercer, uma vez que o estágio passa a ser pago, ainda que muitos patronos não tenham como pagar o valor imposto pelo Estado, não podendo aceitar dar estágio. Também o facto de já ser possível que alguns atos próprios de advogados possam ser realizados por meros licenciados em direito, sem terem qualquer experiência como advogados e sem serem obrigados a responder perante o nosso órgão disciplinar ou até a guardar o dever de sigilo, pedra basilar da advocacia portuguesa, acabará por legitimar a concretização do crime de procuradoria ilícita, obrigando a que muitos advogados em prática isolada fechem portas, por falta de clientes, fruto de concorrência desleal.

Quais são, na sua opinião, as principais razões para que a Justiça seja “a instituição pública mais mal avaliada pelos portugueses”?

Sem dúvida, os atrasos nos processos que cada vez são mais complexos e litigiosos. Todos acham ter razão e como tal, há por vezes dificuldade em gerir os extremos. Aqui o advogado deve ter um papel decisivo. O valor das taxas de justiça para acesso à mesma são muito penosas para o cidadão. O acesso à Justiça devia ter um custo simbólico para o Estado e não ser uma forma de dissuadir aquele de aceder à mesma.

Os principais visados no inquérito do Instituto de Políticas Públicas e Sociais (IPPS) do ISCTE são os juízes, procuradores do Ministério Público (MP) e governos. A este propósito, como encara o manifesto dos 50 contra aquilo que considerem ser o “poder sem controlo” do Ministério Público?

Se se provar que o MP tem um “poder sem controlo”, tal apenas se deve a alguns poderes políticos que se tendem a infiltrar à margem do sistema político e judicial. Assim, caso seja provado esse excesso, o mesmo tem de ser exemplarmente punido, pois demonstra total desrespeito pela separação de poderes, princípio basilar do Estado de Direito dos países democráticos que não pode ser “beliscado”, sob pena dos direitos fundamentais dos cidadãos, que tanto custaram a ser conquistados, serem severamente negados, com tudo o que de negativo isto reflete na vida de cada um de nós e na sociedade democrática onde vivemos, colocando poderes constitucionais da mais elementar justiça em causa.

A Filipa Fraga Gonçalves tem uma vasta experiência na área do arrendamento. É aliás, desde 2010, uma das advogadas da Associação Nacional de Proprietários (ANP). Esta é uma outra área com uma imagem pública bastante má, basta lembrarmo-nos do que se diz e escreve habitualmente sobre os senhorios nas manifestações “pela habitação”. Entretanto, notícias recentes dão conta de que 60% das rendas em Portugal não são declaradas ao fisco. Como é que olha para estes números e para a perceção pública que a sociedade tem dos proprietários e senhorios?

Há uma ideia errónea em torno do senhorio, sendo tendencialmente visto o arrendatário como vítima do eventual poder económico daquele. Nada mais falso. Há inquilinos com rendas muito baixas, algumas abaixo dos 100€ e cujo imposto sobre o rendimento (IRS), bem como o IMI não acompanham. A carga fiscal dos senhorios é pesada. Esta situação pode levar a que alguns contratos não sejam declarados, mas não são a maioria, e muitos são-no a pedido do inquilino ainda que não aceites. Na ANP, os sócios/senhorios declaram as suas rendas e praticam rendas justas. No entanto, o conceito de justiça não é igual para todos, pois, os salários médios no nosso país são baixos, não acompanhando o aumento da inflação e do custo de vida, nomeadamente nos produtos essenciais: comida, água, luz, gás, educação. Desta forma, dificilmente as pessoas poderão considerar qualquer renda razoável.

É o Estado quem deve ajudar os cidadãos e não os senhorios, que são os proprietários das casas que muitas vezes são ocupadas por inquilinos que não cumprem os seus deveres numa casa que não é sua. Há casos que se arrastam em tribunal, porque há inquilinos que não saem das casas nem pagam as rendas sabendo que a situação se vai arrastar por pelo menos dois anos, pois pode sempre haver contestação (mesmo que desprovida de argumentação) e recurso.

Não há mecanismos de efetiva defesa do direito de propriedade em Portugal. Há senhorios que passam muitas necessidades porque vivem das rendas que não recebem, logo sobrevivem e mal. Quando após anos conseguem despejar o inquilino, este não tem bens para pagar a dívida nem os estragos que na maioria das vezes infringe no locado, por negligência ou mesmo por atos dolosos, locado esse onde muitas vezes já não habita mas onde o proprietário não pode entrar sem uma ordem judicial de despejo.

O Direito do arrendamento é uma área de enorme complexidade, muito devido a lacunas e leis feitas sem qualquer noção prática da realidade. Esta é uma temática muito preocupante no nosso país, mas não por culpa dos senhorios, onde a grande maioria cumpre as suas obrigações, mas sim dos governos que ao longo dos anos deixaram que o caos se instalasse. O Estado devia colocar os seus prédios devolutos ao serviço do cidadão, praticando as rendas acessíveis que quer impor ao proprietário particular.

Embora tenhamos pouco espaço, não posso deixar de falar da Associação Crescer, da qual é cofundadora, e que defende a inclusão na comunidade de grupos em situação de maior vulnerabilidade e exclusão. Esta é outra forma de lutar também pela justiça, neste caso a justiça social. É uma preocupação muito presente ao longo da sua vida?

A justiça social é algo que me preocupa cada vez mais. A nossa sociedade está a ficar desprovida de valores humanos e sociais, visando muitas vezes só o lucro e a vaidade social, deixando para trás populações carenciadas. Muitas trabalharam muito ao longo dos anos, mas a reforma é tão baixa que não conseguem viver com mínimo de dignidade. Nas camadas no ativo, as dificuldades já não se aplicam apenas a quem recebe subsídios ou o SMN, mas cada vez mais à classe média, com salários líquidos que rondam os 1300€ mas que não são suficientes para ter uma vida independente e desafogada. A isto junta-se a crise económica que vivemos e que muitas vezes leva ao desemprego que pode vir a descambar numa vida de crime que se associa, cada vez mais, a consumos desviantes de álcool e drogas. Este é um flagelo social crescente nas famílias.

O futuro para onde caminhamos preocupa-me e como tal tendo a tentar ajudar nesta parte social. Foi assim que fiz na Crescer, é assim que faço colaborando com outras associações e foi assim que fiz como professora na academia sénior de Loures, onde dei aulas de Direito (neste momento não dou por falta de tempo), onde verificava ser de grande utilidade a explicação a pessoas com idades acima dos 70 anos, algumas com muito pouca instrução, coisas básicas como ter atenção a ler o contrato da água ou acerca de heranças, regimes de bens ou até crimes que viam diariamente na TV, de forma a tentar alertá-los para muitos perigos, mas também a dar-lhes alguma companhia e atenção, falando de temas que se não fosse desta forma, não saberiam, de forma simples e descontraída.

Tanto a “Crescer” como a “Academia dos Saberes” foram uma experiência maravilhosa. O serviço e a justiça social, são temas a que me quero dedicar cada vez mais.

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